História

Reino de Kush

Embora os egípcios, nos milênios que antecederam o Período Helênico e o Império Romano, tenham sido a civilização mais próspera e radiante do continente africano, o povo egípcio não estava só. Dezenas de outras civilizações, dentre elas o Reino de Kush, habitaram a África séculos antes das primeiras grandes cidades-estado gregas expandirem sua influência em todo o mundo antigo.

O antigo Reino de Kush ou Cuxe localizava-se na Núbia, Alto Egito, onde atualmente encontram-se o Egito e o Sudão. Por possuir uma grande quantidade de minas de ouro, muitos chamavam a região de nuba (nub significa ouro na escrita hieroglífica; assim, núbia significa algo como terra do ouro).

História do Reino de Kush

Formação e fortalecimento

A região da Núbia, desde tempos muito remotos, sempre representou um importante entreposto para nações localizadas na África Central e povos nas margens do Mediterrâneo.

Por volta de 2000 a.C., diversas aldeias e povos da região, após lutas e conflitos locais, acabaram passando por um processo de consolidação, fazendo surgir o Reino de Kush. Kush e sua história estão profundamente ligados à história do próprio Egito. Achados arqueológicos na região do Baixo Egito mostram que peças em madeiras e pedras preciosas características da Núbia eram comuns entre egípcios, uma evidência das relações comerciais entre esses dois reinos. Ainda assim, nem sempre os dois povos estiveram em paz ou mantiveram contato amigável.

Mapa com a localização do Reino Kush.
Localização do Reino Kush, entre os atuais Egito e Sudão.

Entre 1580 a.C. e 1530 a.C., aproximadamente, os egípcios conquistaram o Reino de Kush, expandindo seus domínios em direção sul. Durante o domínio egípcio, o governo na região da Núbia era exercido por um vice-rei de origem cuxita, nomeado diretamente pelo faraó. Como ocorria com outras conquistas, os cuxitas deviam impostos aos conquistadores egípcios. O domínio dos faraós sobre o reino de Kush perdurou até por volta do ano 1000 a.C.

Revoltas internas no Egito enfraqueceram o controle egípcio no reino e permitiram que os cuxitas se tornassem mais uma vez independentes, estabelecendo um novo reino a partir da cidade de Napata, construída por volta de 1450 a.C. pelo faraó Thutmoses III.

Pedido de auxílio e viradas

Kush retomaria sua força, chegando inclusive a dominar algumas cidades ao sul do Reino Egípcio, como Elefantina e até mesmo a importante cidade de Tebas. Nessa mesma época, reis cuxitas encontravam pouca resistência para a tomada de territórios no Egito – que sofria com a invasão assíria, iniciada no século VIII a.C.

Para manter a integridade do reino, sacerdotes egípcios decidiram pedir auxílio aos cuxitas, na altura governados por Piiê. Kush avançou em apoio ao Egito, expulsando os invasores mesopotâmicos e tomando novamente o controle do reino. Os descendentes de Piiê formariam a 25ª Dinastia do Egito, conhecida como a Dinastia dos “Faraós Negros”.

Faraós negros.
Estátuas dos faraós negros da 25ª dinastia, de origem núbia.

Declínio

Embora a união entre o Reino de Kush e o Egito tenha criado um poderoso império, os ataques assírios contra a região continuaram. Os conflitos com os assírios duraram até o ano de 664 a.C. quando Tantamani foi definitivamente derrotado pelos assírios. Com a derrota, a influência dos cuxitas sobre o Egito se perdeu e, anos mais tarde, seria o Egito a invadir Kush, em 591 a.C., saqueando e incendiando a capital Napata.

Após a derrota para os assírios, os egípcios buscaram apagar grande parte dos vestígios deixados pelos faraós cuxitas que ali governaram. Muitos monumentos e estátuas de faraós cuxitas foram encontrados destruídos, com cabeças e pés esmagados.

Com a capital Napata destruída, cuxitas reorganizaram o seu reino em torno da cidade de Meroé, mais ao sul. Há diversas teorias a respeito da migração do reino de Kush para um controle mais ao sul – embora a alternativa militar seja aceita, há também evidências de que próximo a Meroé haveria uma abundância maior de recursos importantes na época, como o ferro e combustíveis para a produção em altos-fornos, além da facilidade de acesso a produtos advindos de partes mais ao sul da África, que eram demandados por civilizações europeias e mesopotâmicas.

Kush seguiria até os primeiros séculos da Era Cristã. A perda de prestígio e as constantes ameaças vindas do norte, de governadores romanos no Egito, ou do sul, de reinos como Axum, tornaram Kush um reino sem grande expressão nesse período. Entre 320-350 d.C., o reino africano de Axum, situado ao norte da atual Etiópia, finalmente conquistou o Reino de Kush.

Após a invasão pelo Império Axum, cuxitas teriam formado, mais tarde, três diferentes reinos – Macúria, Alódia e o Reino da Nobácia.

Economia

Inicialmente, os núbios viviam como nômades, organizando-se em pequenas tribos e vivendo da caça, pesca e coleta. Assim como os egípcios, eles desenvolveram ao longo do tempo técnicas para represar e canalizar as águas do Rio Nilo, o que lhes permitia criar povoados e desenvolver a agricultura.

Economia no Reino Kush.
Representação da utilização de um shaduf para coleta de água em rios, método que os cuxitas utilizavam, muito parecido com o sistema de irrigação egípcio.

Até o fim da dinastia dos faraós cuxitas, a capital do Reino de Kush era Napata. A pecuária desenvolveu-se muito nessa época. Cuxitas possuíam rebanhos consideráveis de caprinos, equinos e muares. Após a transferência do reino para a sede de Meroé, a agricultura tornou-se mais importante – com destaque para a produção de cereais como o trigo, a cevada e o sorgo.

Para irrigar suas plantações com as águas do Nilo, cuxitas usavam o shaduf, um mecanismo composto por um cesto e uma espécie de alavanca. Com avanços na área de carpintaria e metalurgia, esses mecanismos rudimentares foram substituídos por equipamentos movidos a tração animal.

As terras do Reino de Kush também eram ricas em metais, como o ferro e o ouro, e em pedras preciosas. A metalurgia durante muito tempo proporcionou aos cuxitas um bom destaque comercial na Antiguidade. Altos-fornos na região da Núbia produziam em grande escala, tomando vantagem das reservas de ferro e facilidade de acesso a combustíveis. O ouro, do mesmo modo, dava aos cuxitas um bom posicionamento nas relações comerciais com romanos e egípcios.

Cultura

A experiência com pedras e metais preciosos estimulou o desenvolvimento do artesanato. As peças cuxitas eram refinadas em todas as áreas – metalurgia, cerâmica, carpintaria.

A cerâmica também foi bastante desenvolvida pelos cuxitas e, no início, era feita somente pelas mulheres, o que mudou com o passar do tempo. Os vasos tinham, geralmente, a base arredondada e traziam representações de cenas cotidianas, bem como da fauna e da flora da região.

Artes no Reino Kush.
Copos de cerâmica encontrados durante a escavação de um cemitério meroítico.

Peças de artesanato eram vendidas no centro comercial de Meroé. A cidade era um entreposto tradicional e permitiu o intercâmbio cultural com muitos outros povos – ali, além de artesanato e alimentos, era possível encontrar caravanas com produtos raros como o marfim.

Além de Napata e Méroe, o Reino de Kush possuía outras importantes cidades, como Pnubs, Naga, Dongola, Farás, Argos, Kawa e Soba.

Pirâmides cuxitas

O atual Sudão é o país que abriga a maior quantidade de pirâmides construídas e preservadas: cerca de 255 monumentos, número superior ao do Egito, que possui 138 construções. As relações evidentes entre egípcios e cuxitas fizeram com que os dois povos compartilhassem muitas das crenças e cerimoniais.

Havia, claro, diferenças nos rituais e a forma com que sepultamentos ocorriam, porém as pirâmides cuxitas eram bastante semelhantes às egípcias, com a particularidade de possuírem bases mais estreitas e corpos mais pontudos. Além disso, podem ser consideradas “mais baixas”, com alturas que variam dos 6 aos 30 metros.

Pirâmides cuxistas.
Pirâmides da antiga capital Méroe, no atual Sudão.

Sociedade e política

A política em Kush possuía um sistema mais democrático e até mesmo moderno, se comparado à dos egípcios. Ao contrário dos vizinhos, que simplesmente possuíam dinastias nas quais filhos de faraós os sucediam por direito divino, em Kush, em geral, reis eram eleitos através de votos de líderes militares, religiosos e políticos.

Um ritual oficializava a posse do novo rei. Cuxitas lançavam sementes ao chão e perguntavam a Amon (divindade compartilhada no panteão egípcio) se a escolha havia sido a correta. Havendo sinais positivos, o novo rei era celebrado e apresentado ao deus no templo de Amon, recebendo a coroa.

No Reino de Kush, o rei não governava sozinho – o que mostrava novamente uma maturidade administrativa em relação a outros povos da época. Altos funcionários e conselheiros, o escriba-mor e outros escribas, chefes do tesouro, chefes de arquivo, líderes militares, sumo-sacerdotes entre outros, auxiliavam-no na administração do reino. O rei possuía uma guarda pessoal exclusiva e serviçais que apenas lidavam com suas necessidades.

A realidade de conflitos constantes, especialmente com egípcios, dava aos líderes militares cuxitas um grande prestígio. Kush possuía um potente exército, composto de soldados e arqueiros.

É importante destacar que as mulheres eram parte da política cuxita. Muitas delas, mães ou esposas dos reis, conseguiram chegar ao poder, sendo consideradas candaces, que significava Rainhas-Mães. Entre as candaces mais importantes, podemos citar Amanishaketo (420 a 412 a.C.) e Amanirenas (40 a 10 a.C.). Acredita-se que essas mulheres desempenharam fundamental papel em conquistas diplomáticas dos cuxitas ao longo do tempo, principalmente evitando invasões ou ataques romanos ao reino.

Organização da sociedade

A camada dirigente era formada pelo rei e seus familiares, além de nobres e sacerdotes. Também havia uma aristocracia provicincial. Abaixo dela, havia comerciantes, artesãos, soldados e funcionários do reino. Por fim, os criadores de animais e agricultores, todos livres, formavam a maioria da população cuxita.

Religião cuxista

Assim como os egípcios, os cuxitas eram politeístas e cultuavam tanto divindades egípcias quanto deuses meroítas, num interessante sincretismo.

Entre as divindades egípcias cultuadas, estavam Amon, o deus Sol, Osíris, o deus dos mortos, e Hórus, deus falcão e protetor dos vivos. Já as divindades meroítas eram o deus-leão Apedemak, deus com cabeça de leão e corpo humano, considerado a divindade da guerra e protetor dos exércitos, e Sbomeker, deus orientador e guerreiro. Além disso, como ocorria no Egito, alguns animais eram considerados sagrados, entre eles o gato e o crocodilo.

Referência

  • CUNHA, Sonia Ortiz; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Cuxe: o resgate histórico de um antigo Reino Núbio.
  • DA SILVA, Érica Cristhyane Morais. oS impérioS AfricAnoS Do munDo Antigo: KuSh e Axum. O espelho negro de uma nação, p. 43.
  • Unesco. História geral da África II: África antiga. 2. ed. rev. – Brasília: Unesco, 2010.

Por: Carlos Artur Matos