Para Clarice Lispector (1920-1977), o trabalho com a palavra é a essência da criação literária. Em suas narrativas a trama factual passa para o segundo plano.
Biografia
Natural de Tchetchelnik, pequena aldeia na Ucrânia, Clarice Lispector nasceu em dezembro de 1920 durante a viagem de emigração da família em direção à América. Foi batizada como Haia, que significa “vida” em ucraniano. Em 1922, já em Maceió, a família é quase toda rebatizada, e a menina de dois meses passa a se chamar Clarice Lispector.
Em 1925, os Lispector se estabelecem em Recife e seis anos depois, com apenas nove anos, Clarice escreve a peça Pobre menina rica, cujos originais foram perdidos. Data dessa época a morte de Marieta, sua mãe.
Em 1935, a família muda-se para o Rio de Janeiro, onde Clarice entra em contato com a obra de autores como Rachel de Queiroz (1910-2003), Machado de Assis (1839-1908), Graciliano Ramos (1892-1953), Jorge Amado (1912-2001), Eça de Queirós (1845-1900) e Dostoiévski (1821-1881), entre outros.
Um ano depois de entrar na faculdade de Direito, em 1939, publica na imprensa o primeiro conto, “Triunfo”. Casa-se com um colega de faculdade, Maury Gurgel Valente, que se toma diplomata. Em 1944, lança seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, e muda-se para a Europa, acompanhando o marido.
Com sua primeira obra, conquista o Prêmio Graça Aranha, concedido pela Academia Brasileira de Letras, e chama a atenção da crítica pela narrativa inovadora e pelo estilo inquietante, muito diferentes para a época. Na sequência são publicados O lustre (1946), A cidade sitiada (1949) e Alguns contos (1952).
Em 1960, Clarice Lispector se estabelece definitivamente no Rio de Janeiro e com o lançamento de Laços de família (contos) é inscrita entre os grandes prosadores brasileiros.
Ainda na década de 1960, lança A maçã no escuro (1961) e três anos depois publica A legião estrangeira e A paixão segundo G.H., romance considerado por alguns críticos como sua obra-prima. Nesse período, trabalha também como jornalista, realizando entrevistas e escrevendo crônicas no Jornal do Brasil. Publica ainda textos de literatura infantil.
Na década de 1970, destacam-se, entre outros, a prosa poética de Água viva (1973) e o romance A hora da estrela (1977). Em 9 de dezembro, véspera de seu aniversário, Clarice Lispector morre, já consagrada como uma das mais importantes vozes da literatura brasileira, vítima de câncer.
Características estilísticas da escritora
Clarice Lispector é a principal representante da tendência intimista da terceira fase modernista brasileira.
“Não tem pessoas que cosem para fora? Eu coso para dentro.”
O questionamento do ser, o intimismo, o peso existencial são temas abordados pela escritora através do fluxo da consciência ou do monólogo interior. A narrativa é densa, pesada, cheia de idas e vindas, um constante remoer de situações.
Em se tratando da literatura de Clarice Lispector, nem sempre se pode falar em narrativa. Há textos seus em que a interação psicológica é tão intensa, tão dominadora, que é comum não se poder falar em narrativa, em enredo.
A história é entrevista por trás das reflexões e observações da personagem; aparece aos fragmentos, os quais funcionam como uma espécie de base concreta, servindo de meio, de campo de observação para a análise do comportamento mental do ser.
A realidade imediata dada pelo exercício exato dos sentidos ou pela razão acaba perdendo os contornos em seus textos. A grandeza e o significado de suas personagens extrapolam a mesmice, a monotonia da vida e se transformam, solidamente, em símiles através de antíteses e paradoxos; as ambiguidades, as sutilezas ponteiam sua obra: o eu e o não eu, o ser e o não ser.
Quanto à linguagem, Clarice trabalha arduamente na escolha de palavras para expressar o que quer. Valoriza as palavras, tirando o significado banal através de metáforas e de outros recursos. Nela, a linguagem não é apenas instrumento e meio para a comunicação, é parte importantíssima daquilo que a autora retrata: a mente humana.
Em Clarice Lispector, começamos a descobrir que não há palavra usada gratuitamente pelo homem; todas têm sua razão de ser, mesmo quando dão a impressão de banais ou desnecessárias.
Além de trabalhar com frequentes rupturas na sequência temporal linear – em que o enredo se coloca com início, desenvolvimento e conclusão – dificilmente suas obras podem ser classificadas como pertencentes a um gênero narrativo clássico, como o romance, o conto, ou a crônica tradicionais.
Entre outras características de sua prosa, destacam-se:
- inadaptação dos personagens: seus personagens não se mostram adaptados ao mundo moderno, que os despersonaliza e os toma comuns;
- aproximação de vozes: a voz do narrador e as vozes dos personagens se aproximam, tomando cada vez menos definida a fronteira que as divide. A técnica usada é a do fluxo de consciência;
- interiorização narrativa: a narrativa não é mais baseada em acontecimentos dispostos em ordem cronológica Ao contrário, ela é centrada na interioridade e no inconsciente do personagem, em suas angústias e fraquezas;
- epifania: característica fundamental da narrativa clariceana, a epifania representa o momento de “iluminação” a partir do qual é operada uma transformação interior no personagem.
Por: Paulo Magno da Costa Torres
Principais obras
- Laços de família
- A paixão segundo G.H.
- A hora da estrela
- Felicidade Clandestina
- Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres