Biografias

Pensamento Político de Maquiavel

O destino do pensamento de Maquiavel, cinco séculos depois de sua morte, ainda não foi decidido. Lido por muitos, sua obra tem conhecido tantas interpretações divergentes quanto são os filósofos e ensaístas que dele se aproximam para analisá-lo.

De um modo geral, os críticos de Maquiavel até o século XIX se basearam quase exclusivamente no seu livro mais brilhante, O Príncipe, lendo-o em regra de má fé, citando frases fora do texto, não levando em conta o ambiente histórico em que surgiu e deturpando assim seu pensamento pela simplificação ou insuficiente compreensão de suas ideias. Por outro lado, seus defensores se colocaram num extremo oposto igualmente inaceitável, apresentando-o como um cristão convicto, republicano, patriota exaltado e amante da liberdade que teria pregado o absolutismo como mero expediente político ou refletindo apenas as imposições do momento histórico.

Para entendermos de fato as ideias de Maquiavel, é preciso avaliar criticamente toda a sua obra, situando-a no momento histórico em que a Itália – por suas próprias palavras – “… estivesse mais escravizada do que os hebreus, mais oprimida do que os persas, mais desunida que os atenienses, sem chefe, sem ordem, batida, espoliada, lacerada, invadida …” (O Príncipe – Cap. XXVI), examinando-a em sua inteireza e valorizando, de modo particular, ao lado d’ O Príncipe, a História Florentina, a Arte da Guerra e os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, livros que se completam, sendo que os últimos apresentam, com relação aos primeiros, pontos de aproximação e de contraste, sendo indispensáveis para nos dar uma visão íntegra do pensamento de Maquiavel, no qual a justificação do absolutismo coexiste com um manifesto entusiasmo pela república.

O pensamento político

O conjunto de ideias de Maquiavel constituiu um marco que dividiu a história das teorias políticas. Em Platão (428 – 348 a.C.), Aristóteles (384 – 322 a.C.), Tomás de Aquino (1225 – 1274) ou Dante (1265 – 1321), o estudo da teoria do estado e da sociedade vinculava-se à moral e constituía-se como ideais de organização política e social. O mesmo podemos dizer de Erasmo de Rotterdam (1465 – 1536) no Manual do Príncipe Cristão, ou Thomas More (1478 – 1535) na Utopia, que constróem modelos ideais de bom governante de uma sociedade justa baseados num humanismo abstrato.

Maquiavel não é idealista. É realista. Propõe estudar a sociedade pela análise da verdade efetiva dos fatos humanos, sem perder-se em vãs especulações. O objeto de suas reflexões é a realidade política, pensada em termos de prática humana concreta. Seu maior interesse é o fenômeno do poder formalizado na instituição do Estado, procurando compreender como as organizações políticas se fundam, se desenvolvem, persistem e decaem. Conclui, através do estudo dos antigos e da intimidade com os poderosos da época, que os homens são todos egoísta e ambiciosos, só recuando da prática do mal quando coagidos pela força da lei. Os desejos e as paixões seriam os mesmos em todas as cidades e em todos os povos. Quem observa os fatos do passado pode prever o futuro em qualquer república e usar os métodos aplicados desde a Antiguidade ou, na ausência deles, imaginar novos, de acordo com a semelhança entre as circunstâncias entre o passado e o presente.

Em sua obra de maior expressão, O Príncipe, Maquiavel discorre 26 capítulos de como deve ser e agir o governante ideal, capaz de garantir a soberania e a unidade de um Estado. Em seu segundo capítulo, deixa claro que trata de governos monárquicos – “Não tratarei das repúblicas, pois em outros lugares falei a respeito delas.” (O Príncipe, cap. II) – já que suas ideias sobre as repúblicas são expostas em Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio.

Para tanto, parte do estudo da Antiguidade, principalmente da história de Roma, buscando qualidades e atitudes comuns aos grandes estadistas de todos os tempos. Busca também o conhecimento dessas qualidades ideais nos grandes potentados de sua época, como Fernando de Aragão e Luís XIII, e até mesmo o impiedoso César Bórgia, modelo vivo para a criação de seu ideal de ” príncipe” .

O motivo pelo qual Maquiavel tem sido em geral considerado exclusivamente um defensor do despotismo está em que O Príncipe foi o livro mais largamente difundido – na verdade muitos de seus críticos não leram senão este livro – ao passo que os Discursos nunca chegaram a ser tão conhecidos. Uma vez bem compreendida a exaltação da monarquia absoluta, pode coexistir com as manifestas simpatias pela forma de governo republicana.

Ambos os livros tratam do mesmo tema; as causas da ascensão e declínio dos Estados e os meios que os estadistas podem – e devem- usar para torná-los permanentes. O príncipe trata de monarquias ou governos absolutos, ao passo que os Discursos concentram-se sobre a expansão da República romana.

Ao escrever os Discursos, Maquiavel pretendia, através da história de Roma (anterior ao império), buscava a grandeza da republica romana, convencido das excelências do governo popular sempre que as condições fossem propícias para um regime republicano. Mostram amor à liberdade republicana antiga e ódio à tirania.

Já O Príncipe foi escrito devido ao desejo de Maquiavel de retornar à vida pública, caindo na graça dos Médicis, que haviam retornado ao poder. Para tanto, tenta demonstrar o seu valor como conselheiro político através do livro, utilizando sua cultura e sua experiência para elaborar um “manual”, onde buscava saber qual é a essência dos principados; quantas são as suas formas; como adquiri-los; como mantê-los e porque eram perdidos. Além disso, alimentava a convicção de que uma monarquia absoluta constituía como a única solução possível naquele momento de corrupção e anarquia da vida italiana, para unificar a Itália e libertá-la do domínio estrangeiro.

A fortuna seria o acaso, circunstâncias e acontecimentos que independem da vontade das pessoas, constituindo a metade da vida que não pode ser governada pelo indivíduo e chave para o êxito da ação política. Segundo Maquiavel, ela é poderosa, mas não onipotente; deixa uma oportunidade ao livre arbítrio humano, só exerce seu poder onde não há nenhuma resistência contrária que ela o demonstra, é quando os homens são covardes e fracos que ela demonstra sua força “porque a sorte é mulher e, para dominá-la é preciso bater-lhe e contrariá-la .””(O Príncipe, cap. XXV), sorrindo apenas para os audaciosos que a abordam com brusquidão.

Em Roma, Virtus, a origem da palavra virtude, trazia a marca forte da primeira sílaba Vir, que significava homem. Virtus significa as qualidade do lutador e guerreiro, de um indivíduo viril. Virtù é a qualidade que se refere, ao mesmo tempo, à firmeza de caráter, à coragem militar, à habilidade no cálculo, à capacidade de sedução, à inflexibilidade. Essa imagem do guerreiro viril que se afirma e faz valer seus direitos, que Maquiavel acreditava ser necessária à ordem política para sua autorrealização.

Portanto, o homem de virtù é aquele que sabe o momento exato criado pela fortuna, no qual a ação poderá funcionar com êxito. É inventor do possível numa situação concreta dada. Busca na história uma situação semelhante e exemplar, da qual saberia extrair o conhecimento dos meios para a ação e previsão dos efeitos.

O político de virtù é necessário nos momentos em que a comunidade se encontra ameaçada por algum grave perigo, sendo ele isento de culpa pelo uso de meios indiscriminados. a estabilidade política depende de boas leis e instituições, para não se tornar tirania. Seu mérito está em dar forma conveniente para a matéria, que é o povo, institucionalizando a ordem e a coesão social.

Para Maquiavel, o governo fundamenta-se na incapacidade do indivíduo de defender-se contra a agressão de outros indivíduos a menos que apoiado pelo poder do estado. A natureza humana, porém, mostra-se egoísta, agressiva e gananciosa; o homem quer conservar o que tem e buscar mais ainda. Por isso mesmo, os homens vivem em conflito e competição, o que pode acarretar uma anarquia declarada a menos que seja controlada pela força que se esconde atrás da lei. Assim, o governo para ser bem sucedido, quer uma monarquia ou república, deve objetivar a segurança das propriedades e da vida, sendo esses os desejos mais universais da natureza humana. Daí sua observação que ” os homens esquecem mais depressa a morte do pai que a perda do seu patrimônio” (O Príncipe, cap. XVII). Assim, o essencial numa nação é que os conflitos originados em seu interior sejam controlados e regulados pelo Estado.

Em função do modo pelo qual os bens são compartilhados, as sociedades concretas assumem diferentes formas. Assim, a forma monárquica não se adapta a povos em que predomine uma grande igualdade social e econômica, como também não é possível instaurar uma república onde impere a desigualdade. Considerava a república como o regime mais propício à realização do bem-comum (“Não o bem particular mas o bem comum é que dá grandeza ás cidades. E, sem dúvida, esse bem comum não é respeitado senão nas repúblicas…”- Disc. L. II, c. II). Entretanto, reconhece que para a Europa do século XVI, a forma de governo mais adequada era a monarquia absoluta.

As repúblicas apresentariam três formas: a aristocrática, na qual uma maioria de governados se encontra diante de uma minoria de governantes, tal como Esparta; a democrática em sentido restrito, em que uma minoria de governados se acha diante de uma maioria de governantes, como em Atenas; e a democracia ampla, quando a coletividade se autogoverna, isto é, o Estado se confunde com o governo, como em Roma após a instituição dos tribunos da plebe e a admissão do povo à magistratura.

Maquiavel acreditava que a forma perfeita de governo republicano é aquele que apresenta características monárquicas, aristocráticas e populares de forma harmoniosa e simultânea, ou seja, uma república mista. Observa que uma monarquia facilmente se torna uma tirania; que a aristocracia degenera em oligarquia e que o governo popular converte-se em demagogia, formas corrompidas da república segundo o ideal aristotélico.

Porém, a organização ou reforma de uma república, da mesma forma que a fundação de um reino, exige um chefe com poder absoluto, tais como foram Rômulo, Moisés, Licurgo e Solon. Não se deve buscar indícios que desta forma Maquiavel estaria defendendo um tirano. Pelo contrário, faz seu ódio à tirania, que não tem como meta o triunfo do estado, mas o engrandecimento de quem se apoderou do seu poder.

O fundador ou reformador deve preocupar-se em ampliar o governo do Estado, entregando a sua direção a um colégio de homens virtuosos para garantir a estabilidade das instituições.

No livro “La politica di Machiavelli, 1926”, Francesco Ercole observa que o republicanismo de Maquiavel foi muito relativo, pois a oportunidade da república está condicionada pela existência de altas virtudes morais e políticas na coletividade, as quais possam levar os indivíduos a sacrificar seus fins egoísticos e particularidades às finalidades comuns do Estado.

O Estado maquiavélico existe na medida em que não dependa de qualquer vontade estranha, na medida em que seja soberano. Não aceita nenhuma autoridade externa que imponha limites à sua ação, nem a existência de grupos internos que pretendam escapar do seu poder soberano, limitando os desejos individuais de cada um em favor do interesse geral através das leis.

Em oposição ao pensamento medieval, Maquiavel desvincula totalmente o Estado da Igreja. Sendo este uma entidade política secular, dotada de fins próprios, moralmente isolada e soberana, não poderia estar subordinada a Deus, ao direito natural ou à Igreja, encontrando sua razão de ser na convicção dos homens de que a autoridade estatal é indispensável para garantir a segurança individual, não por “graça” divina.

O Estado existe para proteger cada indivíduo contra a violência e, ao mesmo tempo, para defender a coletividade contra ataques que poderão advir de seus inimigos externos; rodeado como se acha de inimigos, deve o Estado precaver-se, fortalecendo-se adequadamente, pois sua segurança e sobrevivência repousam fundamentalmente na força. A capacidade de um estado defender-se depende também da popularidade do governo, que será tanto maior quanto maior for o sentimento de segurança que conseguir transmitir a seus cidadãos.

E como garantir a soberania do Estado? Primeiramente, deve-se ter a consciência de que a lei reguladora das relações entres os estados é a luta. Se não molestar os demais, buscando viver em paz dentro de seu território, fatalmente será molestado pelos demais pois ” É impossível que uma república consiga permanecer tranquila e gozar sua liberdade dentro de suas fronteiras: porque se não molestar as demais, será molestada por elas; e daí lhe nascerá o desejo e a necessidade de conquistar.” (Disc. L. II, cap. XIX). – Um Estado só é verdadeiramente livre quando possui a capacidade de garantir sua liberdade. Para tanto, Maquiavel defende um exército próprio, pois “sem possuir armas próprias, nenhum principado está seguro” (O Príncipe – cap. XIII), sendo as tropas auxiliares instáveis e as de mercenários facilmente corrompidas, devendo o exército ser integrado por seus próprios cidadãos.

Apesar do entusiasmo republicano de Maquiavel, é preciso atentar para suas limitações. No capítulo LVIII dos “Discorsi”, ele transparece a confiança que depositava nas virtudes do governo popular, desenvolvendo a ideia de que “a multidão é mais sábia e constante do que um príncipe”, pois ao comparar um príncipe e um povo subordinado às leis, verifica que o povo mostra qualidades superiores às do príncipe, porque é mais conforme e constante; se ambos estão livres de qualquer lei, resulta que os erros do povo são menos numerosos e mais fáceis de ser reparados do que os do príncipe.

A participação popular no governo é essencial para manutenção da unidade política, tendo em vista que um povo dócil ou aterrorizado não encontra forças ou motivação para defender as causas do Estado como coisa sua, por não se identificar como parte do Estado, faltando o sentimento de patriotismo tão exaltado por Maquiavel em toda a sua obra. Mas essa participação popular não deve ser confundida com a participação popular em um regime democrático. Maquiavel considerava a maioria do homens desprovidos de virtù. Então, mesmo que a função de um soberano seja organizar ou reformar uma sociedade, correspondendo a um momento determinado na trajetória de um povo, esse mesmo povo precisava ser moldado como argila pelas mãos do político de virtù, que infunde a sua virtude para construir ou reconstruir a ordem política.

Muitas vezes é discutida a imoralidade habilmente usada para concretizar os fins do governante; porém, Maquiavel não é tanto imoral quanto amoral. Simplesmente abstrai a política de outras considerações e discorre sobre ela como se fosse um fim em si mesma. Segundo Lauro Escorel “Não se encontra na obra de Maquiavel a máxima fartamente popularizada, ‘ os fins justificam os meios ’, cunhada, na verdade, durante o período da Contra – Reforma. Encarando a política como uma técnica, ele só julgava os meios em função de sua eficiência política, independente de serem bons ou maus.” Encontraremos semelhante afirmação em Carl J. Friedrich:” A verdade é que a sentença ‘ os fins justificam os meios ’ nem mesmos consta dos escritos seus, sendo encontrada algumas vezes em traduções, sem, contudo, existir no texto original. O tradutor tinha tanta certeza de que era isso que ele queria dizer que traduziu uma sentença que em italiano quer dizer ‘ toda ação é designada em termos do fim que procura atingir ’, e a razão para Maquiavel não dizer isso se torna muito clara. A justificação não é necessária, e tal problema só surge quando precisamos comparar essa racionalidade em termos da necessidade da situação com alguma convicção moral, religiosa ou ética. Foi esse precisamente o problema que Maquiavel eliminou quando disse que a própria organização, ou seja o Estado, é o valor mais alto e vai além do qual não existe um limite.” Esta foi a grande inovação de maquiavel; não importa os meios que serão empregados; o Estado nacional soberano está autorizado a promover a qualquer preço a prosperidade e a grandeza temporais do grupo humano – a nação, a pátria – por ele representado, sem que isso trouxesse qualquer condenação ou culpa.

Maquiavel e o maquiavelismo

Se procurarmos nos dicionários de língua portuguesa, encontraremos o significado da palavra “maquiavelismo” como: “sistema político baseado na astúcia, exposto pelo florentino Maquiavel em sua obra O Príncipe; política desprovida de boa fé; procedimento astucioso; perfídia.”

A partir dessa definição, e até mesmo da formação do substantivo (Maquiavel + ismo ) concluímos que o maquiavelismo surge de Maquiavel, ou melhor, do seu pensamento político. É um grande equívoco, que vem persistindo até os dias atuais.

Não é necessário um estudo aprofundado de sua obra. Basta uma leitura minuciosa do livro O príncipe, em que Maquiavel descreve os jogos políticos do passado e do presente, baseado em fatos históricos, principalmente da Antiguidade Clássica. Mesmo em sua dedicatória, temos elementos que comprovam a origem de suas considerações: “Desejando eu oferecer a vossa Magnificência uma testemunho qualquer de minha obrigação, não achei, entre meus cabedais, coisa que me seja mais cara ou que tanto estime quanto o conhecimento das ações dos grandes homens apreendido por uma longa experiência das coisas modernas e uma contínua lição das antigas; as quais, tendo eu, com grande diligência, longamente cogitado, examinando-as…”

O maquiavelismo é na verdade a política corrente entre os poderosos de todos os tempos, surgido no curso natural da história. Assim, poderemos observar que as grandes personagens maquiavélicas – Moisés, Ciro, Rômulo, Solon, Licurgo, Teseu, César Borgia, Luís XII, E outros – são vultos históricos do passado ou presente que lhe servem de exemplo para as suas considerações, mas não faz uma leitura crítica da História. A ideia de que a justiça é o interesse do mais forte, o recurso a meios violentos e cruéis para se alcançar os objetivos não foram receitas inventadas por Maquiavel, mas remontam a Antiguidade e caracterizam a sociedade do cinquecento. assim, podemos dizer que o maquiavelismo antecede a Maquiavel, que é responsável pela sistematização das práticas de ação dos detentores do poder, fazendo da prática uma teoria.

Por: Renan Bardine

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