Direito

Capacidade e Competência

Na caracterização das pessoas físicas e jurídicas, tendo em vista sua aptidão para serem sujeitos de Direito, a dogmática analítica costuma valer-se de dois outros conceitos: o de capacidade e o de competência.

Capacidade

O termo capacidade costuma ser usado para expressar uma aptidão. Diz se que o sujeito capaz está apto a exercitar seus próprios direitos.

Na noção de capacidade, estão contidos, na verdade, dois sentidos: um refere-se à aptidão para ser sujeito de Direitos e Obrigações, enquanto condição mesma da personalidade. Assim reza o art. 2º do Código Civil brasileiro, ao prescrever que todo homem é capaz de Direitos e Obrigações. É o que se chama também de capacidade jurídica. No Direito moderno e nas sociedades democráticas, essa capacidade (ou Direito à personalidade) é reconhecida a todos os seres humanos.

O outro sentido refere-se à aptidão para agir. Fala-se em capacidade de ação. Neste segundo sentido, a capacidade conhece graus, admitindo-se distinções entre plenamente capazes e absolutamente e relativamente incapazes. Assim, por exemplo, os menores são incapazes absolutamente, até certa idade, no sentido de capacidade de ação, não obstante sua aptidão para ser sujeitos de Direitos e de Deveres, no sentido de capacidade jurídica. Isto é, são sujeitos de Direito, mas não podem assumir, por si próprios, obrigações nem cometer delitos (não tem capacidade de ação nem capacidade delitual).

A Doutrina alemã sustenta a diferença, falando em capacidade de Direito e capacidade de Fato, ou também em capacidade de Direito e Faculdade de Agir. O problema está em fundamentar a distinção na passividade (ser capaz) e na atividade (realizar a capacidade). Por isso, na Doutrina brasileira, prefere-se o uso da expressão personalidade para indicar a condição humana de ser sujeito de direitos e deveres e capacidade, para significar o exercício de direitos e deveres.

A distinção, de qualquer modo, parece confusa e tem sido objeto de críticas. O intuito dogmático é, nesta oportunidade, fazer frente à generalização da qualidade de pessoa a todos os seres humanos e ao mesmo tempo, estabelecer-lhes limites. Na antiguidade, escravos não eram pessoas, eram objetos. Crianças são pessoas, mas não podem ser responsabilizadas juridicamente por seus atos. Assim, não tem capacidade de comprometer-se, de firmar contratos, nem capacidade política nem capacidade delitual. Não obstante isso, são sujeitos ativos de certos Direitos, por exemplo, de sucessão, de cuidados especiais, quando abandonadas, podendo destarte ser também, por seu patrimônio, sujeito passivo de certas obrigações; por exemplo, se recebem mais do que lhes competia em sua parte hereditária, são obrigadas a restituir. Aí estaria a razão prática para separar capacidade de ação e delitual de capacidade jurídica.

A capacidade jurídica adquire-se com o nascimento da pessoa, muito embora já antes se possa vislumbrar proteção jurídica para o nascituro. A capacidade de ação, porém, no sentido de exercer por si e plenamente os direitos e deveres correspondentes à capacidade jurídica (negociar – capacidade negocial; cometer delitos – capacidade delitual; votar e ser eleito – capacidade política, etc.), depende de circunstâncias previstas no ordenamento (atingir certa idade), ser emancipado pelos responsáveis legais ou casar-se, etc.).

Enquanto essas circunstâncias não ocorrem, o exercício de alguns desses direitos e deveres (negociar, receber a herança, aceitar uma doação, pagar impostos sobre seu patrimônio etc.) pede um representante (os pais, na falta destes, os tutores, etc.). É a figura da representação, de extraordinária importância no mundo civil e comercial e estende-se também às relações entre pessoas com plena capacidade de ação, podendo a própria pessoa capaz designar alguém que a represente no exercício de seus direitos e deveres.

A noção de representação tem ainda outro sentido, que guarda com a representação de modo geral certa afinidade, mas que dela se distingue pelo interesse público nela envolvido: a representação política, o direito de participar politicamente da elaboração das normas legais para toda comunidade, na constituição do Estado e seus agentes administrativos e judiciais.

Para distinguir entre as duas representações, costuma-se dizer que o representante em geral recebe uma procuração, enquanto o representante político tem um mandato. A distinção, porém, não é restritamente aplicada, pois mesmo em organizações privadas- um clube recreativo, por exemplo – diz-se que seu presidente foi eleito para um mandato de tantos anos. É a ambiguidade da palavra política, que se aplica tanto para o autogoverno da comunidade em geral, mas também para a organizações menores.

Competência

Isso nos conduz ao conceito de competência. Em princípio, quando a dogmática quer se referir-se ao poder jurídico conferido a pessoas físicas e jurídicas privadas, ela fala em capacidade de ação. Quando se refere às pessoas jurídicas públicas, fala em competência. Posta dessa maneira, a distinção é confusa. Afinal, se o diretor presidente de uma sociedade anônima (uma pessoa jurídica privada) assina um documento para que o não estava autorizado pela assembleia geral, diz- se que agiu fora do âmbito de sua competência.

Na verdade, a expressão competência tem a ver com o sistema de papéis isolados e integrados na chama pessoa jurídica. Competência é o poder jurídico atribuído pelo estatuto da pessoa jurídica (pública ou privada) a seus órgãos. É, pois, um conceito típico das organizações burocráticas. Órgão é um é um papel isolado ao qual se atribuem certas funções dentro de certos limites.

No conceito de órgão, enquanto suporte de funções, o elemento pessoal (no sentido de pessoa física) é dele artificialmente separado, muito embora, para o senso comum, estejam vinculados (para o senso comum, o presidente da empresa e o Sr. Fulano de Tal praticamente não se distinguem). Quando alguém (pessoa física) é eleito ou é designado para exercer as funções de um órgão, recebe um mandato. O mandato corresponde a um poder jurídico para o exercício de certas funções estatutariamente delimitadas, ao que se dá o nome de competência.

O uso da expressão competência restringe-se ao poder jurídico, exclusão feita da capacidade delitual. Não dizemos, como para a palavra capacidade, “competência para cometer delitos”. A competência é apenas para exercer poder jurídico, isto é, assumir direitos e deveres ou, mais genericamente, realizar atos jurídicos. Os atos do órgão fora da competência não são delitos, mas padecem de nulidade. Não obstante isso, a pessoa jurídica, cujo órgão agiu fora de sua competência responde pela ilicitude perante terceiros. Essa responsabilidade, porém, exclui os ilícitos penais, muito embora haja hoje quem discuta a possibilidade de responsabilizar-se penalmente as pessoas jurídicas (questão objeto do Direito Penal Econômico). Até o momento, porém, a Doutrina restringe-se a ilicitude penal ao indivíduo pessoa física, aceitando apenas a ilicitude civil para as pessoas jurídicas, que podem ser punidas – civilmente- por restrições a seu patrimônio: ver, por exemplo o disposto no art. 173, §5º da Constituição de 1988.

Em síntese, a distinção entre capacidade e competência pode ser explicada pelo modo como são elas normalmente estabelecidas. Competência e capacidade são, nesses termos, formas de poder jurídico, isto é, de aptidão do sujeito para o exercício impositivo de comportamentos ou para si próprio(capacidade) ou para terceiros(competência). Assim, para que um sujeito seja capaz ou competente, é preciso estabelecimento, por meio de normas, da autorização para agir e das respectivas condições.

Ora, tais normas instituidoras de poder conhecem conteúdos e funções distintas. Assim, aquelas cujo conteúdo é estabelecimento de um poder que chamamos de autonomia privada e cuja função é capacitar o sujeito dar forma as suas relações jurídicas, de acordo com seus próprios interesses nos marcos da ordem jurídica, instituem o que se chama de capacidade. Ou seja, a capacidade enquanto poder de autovincular se é poder não qualificado (qualquer pessoa o tem), autônomo (é usado para obrigar a própria pessoa), é discricionário (exerce-se livremente) e é transferível (pode ser transmitido a outro sujeito).

De outro lado, temos as normas instituidoras de poder, cujo conteúdo é o estabelecimento do que se pode chamar de poder heterônomo e cuja função é capacitar o sujeito a dar forma a relações jurídicas de terceiros. Tais normas instituem o que então se chama competência. Ou seja, a competência enquanto poder de impor vinculações a terceiros é poder qualificado (conferido apenas a certos sujeitos), é poder que se exerce não para si próprio, mas para o outro (heteronomia), é poder vinculado a certas condições (não se exerce livremente) e não é transferível (não podendo ser transmitido, mas apenas delegado, isto é, quem delega uma competência não a perde).

Autoria: Tércio Sampaio Ferraz Jr.