Direito

As Misérias do Processo Penal

O livro “As Misérias do Processo Penal” é uma obra de Francesco Carnelutti, um dos mais importantes juristas italianos do século XX. Nele, o autor analisa as principais críticas ao sistema penal e aponta soluções para os problemas existentes.

Carnelutti defende que o processo penal deve ser mais humanizado e menos burocrático, pois atualmente ele é ineficaz e injusto. O livro apresenta diversos exemplos de casos em que o sistema penal falhou, bem como propostas para melhorar o funcionamento do mesmo.

Este conteúdo será útil para aqueles que desejam um resumo dos capítulos do livro e, assim, entender as principais críticas ao sistema penal.

Capítulo de prefácio

O que se pretende com este livro, segundo o próprio autor, é fazer do processo penal um motivo de introspecção, e não de diversão.

A lei é uma consecutio necessária, ou seja, um liame entre um fato (prius) e uma consequência (post) a ele associado. Não há possibilidade de a consequência não se seguir à causa.

O direito e o direito penal, em particular, diferenciam-se da natureza. Enquanto, no âmbito não jurídico, as consequências associadas às causas são absolutamente naturais, o direito é uma arte precisamente porque à causa, prevista na lei jurídica, propõe uma consequência artificial.

Para Carnelutti, o próprio ato de julgar com base em normas jurídicas já é artificial.

Para julgar um processo penal, seria preciso ver o todo, seria preciso conhecer a vida inteira do acusado. Como o ser humano não pode antever o futuro, e o passado se apresenta inapreensível, devido ao volume e complexidade das tramas que o compõem, todo julgamento está fadado ao insucesso. Todo julgamento é a revelação da miserável condição humana.

O processo morre sem alcançar a verdade. Cria-se, então, um substitutivo para a verdade: a coisa julgada.

Os fatos têm comprovado que as penas tradicionais raramente curam o condenado. A prisão é o maior exemplo. Ela pune, mortifica, degenera, faz aumentar o ócio, multiplica os ressentimentos e as revoltas. A prisão só não recupera.

O direito é necessário, mas não é suficiente.

Capítulo de introdução

O processo penal é a pedra de toque da civilidade não apenas porque o delito, de diferentes maneiras e em diferentes intensidades, é o drama da inimizade e da discórdia, mas porque ele representa a relação que se desenvolve entre quem o comete, ou se supõe que o comete, e aqueles que assistem à sua perpetração.

Coisificar o homem: pode haver fórmula mais expressiva da incivilidade? No entanto, é o que ocorre, nove a cada dez vezes, no processo penal. Na melhor das hipóteses, os acusados, encerrados em jaulas como os animais no jardim zoológico, assemelham-se a seres humanos fictícios, não verdadeiros.

Capítulo 1 – A toga

A toga, assim como o traje militar, desune e une, ela separa os magistrados e advogados dos leigos para uni-los entre si.

A união é dos juízes entre si, em primeiro lugar. O juiz, como se sabe, não é sempre um homem só. Nas causas mais graves, é comum atuar um colegiado de juízes. No entanto, dizemos “juiz” também quando os juízes são mais de um, precisamente, porque se unem uns aos outros, assim como as notas emitidas por um instrumento musical se fundem nos acordes.

Em relação ao juiz, o acusador e o defensor estão do outro lado da barricada. Dir-se-ia que, se a toda é um símbolo de autoridade, eles não deveriam usá-la.

No processo, é necessário fazer a guerra para garantir a paz. As togas do acusador e do defensor significam que atuam a serviço da autoridade. Aparentemente, eles estão divididos, mas na realidade estão unidos, no esforço que cada um realiza para alcançar a justiça.

As togas dos magistrados e dos advogados se perdem na multidão. São cada vez mais raros os juízes que usam da severidade necessária para reprimir tal desordem.

Capítulo 2 – O preso

Para mim, o mais pobre de todos os pobres é o preso, o encarcerado.

As algemas, também elas, são um símbolo do direito. Talvez elas sejam, pensando bem, o mais autêntico emblema jurídico, mais expressivo do que a balança e a espada. É necessário que o direito sujeite as nossas mãos. As algemas servem para desnudar o valor do homem. Segundo um grande filósofo italiano, esta é a razão de ser e a função do direito. Quidquid latet apparebit, repete ele: tudo o que está oculto será revelado.

Basta tratar o delinquente como um ser humano, e não como besta, para se descobrir nele a chama incerta do pavio fumegante que a pena, em vez de extinguir, deve reavivar.

Cada um de nós é prisioneiro, na medida em que está encerrado em si mesmo, na solidão do seu eu e no amor próprio. O delito não é senão uma explosão do egoísmo. O outro não conta; o que conta é apenas o eu. Somente quando se abre para os outros, o homem sai da prisão. Nesse momento, a graça de Deus penetra pela porta que se abriu.

Ser homem não é não ser, é apenas poder não ser animal. Essa potência é a potência de amar.

Capítulo 3 – O advogado

O preso não necessita de alimentos, nem de vestidos, nem de casa, nem de remédio. O único remédio, para ele, é a amizade. As pessoas não sabem, nem o sabem os juristas, que o que se pede ao advogado é a esmola da amizade, mais do que qualquer outra coisa.

A simples palavra “advogado” soa como um grito de ajuda. Advoctus, vocatus ad, chamado a socorrer.

O que atormenta o cliente e o impulsiona a pedir ajuda é a inimizade. As causas civis e, sobretudo as penais são fenômenos de inimizade. A inimizade ocasiona um sofrimento ou, pelo menos, um dano comparável ao de certos males que, quando não revelados pela dor, minam o organismo. Por isso, da inimizade surge à necessidade da amizade. A dialética da vida é assim. A forma elementar da ajuda, para quem se encontra em guerra, é a aliança. O conceito de aliança é a raiz da advocacia.

O acusado sente ter contra si a aversão de muita gente. Algumas vezes, nas causas mais graves, parece-lhe que o mundo inteiro está contra ele. É necessário se colocar no lugar dos acusados, para compreender a sua espantosa solidão e a sua consequente necessidade de companhia.

A essência, a dificuldade, a nobreza da advocacia é situar-se no último degrau da escada, junto ao acusado.

A soberba é o verdadeiro obstáculo a rogativa. A soberba é uma ilusão de poder.

Em conclusão, é necessário submeter o juízo próprio ao alheio, ainda quando tudo faz crer que não há razão para se atribuir a outro uma maior capacidade de julgar.

No plano social, isso significa colocar-se junto ao imputado.

A poesia é algo que um advogado sente em dois momentos de sua carreira: quando veste pela primeira vez a toga e quando, se ainda não se aposentou, está para aposentá-la – na alvorada e no crepúsculo. Na alvorada, defender a inocência, fazer valer o direito, fazer triunfar a justiça, esta é a poesia. Depois, pouco a pouco, perecem as ilusões, como as folhas das árvores durante a estiagem. Porém, através do emaranhado dos ramos cada vez mais desnudos, o azul do céu sorri.

Capítulo 4 – O juiz e as partes

O homem é uma parte. Aqueles que estão diante do juiz para serem julgados são partes, quer dizer que o juiz não é parte. Os juristas dizem que o juiz está super partes.

Porém, o juiz também é um homem. E se é homem, também ele é uma parte. Ser e não ser, simultaneamente, parte: esta é a contradição em que se debate o juiz. Ser um homem e dever ser mais que um homem é o seu drama.

Nenhum ser humano, se pensasse no que é necessário julgar outro ser humano, aceitaria ser juiz.

Somente a consciência da sua indignidade pode ajudar o juiz a ser menos indigno.

O princípio do colegiado é um remédio contra a insuficiência do juiz, no sentido de que, se não a elimina pelo menos a reduz.

O juiz, para ser juiz, é preciso crer que não se põe a alma humana sobre a mesa de Anatomia, como se põe o corpo. Não se deve confundir o espírito com o cérebro.

Capítulo 5 – Da parcialidade do defensor

Todo ser humano é parte. Por isso, ninguém chega a se apoderar da verdade. O que cada um de nós crê ser a verdade não é mais do que um aspecto da verdade – algo como uma minúscula faceta de um diamante.

As razões são aquela fração de verdade que cada um de nós julga haver alcançado. Quanto mais razões se exponham, mais será possível que, conciliando-as, alguém se aproxime da verdade.

Acusador e defensor são, em última análise, dois argumentadores. Eles constroem e expõem razões. O seu ofício é argumentar, mas argumentar de um modo peculiar, para atingir uma conclusão preconcebida. O raciocínio do acusador e do defensor é diferente do raciocínio do juiz. O defensor e o acusador devem buscar as premissas para chegar a uma conclusão preconcebida.

Se o advogado fosse um argumentador imparcial, não apenas trairia o seu próprio dever, como se colocaria em contradição com a sua razão de ser no processo, de maneira que este ficaria desequilibrado.

No fundo, a proposta contra os advogados é a proposta conta a parcialidade do ser humano. Examinando bem, eles são os Cireneus da sociedade. Carregam a cruz pelos outros. Esta é a sua nobreza.

Capítulo 6 – Das provas

É preciso saber, antes de tudo, o que é um fato. Um fato é um pedaço da história. Fato é um pedaço do caminho. Do caminho efetivamente trilhado.

As provas servem, exatamente, para se voltar ao passado, para se reconstruir a história. Um trabalho de habilidade, no qual colaboram a polícia, o Ministério Público, o juiz, os defensores, os peritos.

As testemunhas são acuadas como a lebre pelo cão de caça. Todos, não raro, terminam explorados, induzidos, comprados. Os advogados são alvo dos fotógrafos e jornalistas. Frequentemente, nem os magistrados conseguem opor, a esse frenesi, a resistência que o ofício exige.

Essa degeneração do processo penal é um dos sintomas mais graves da civilização. O sintoma mais evidente é a falta de respeito ao acusado.

Quando recai sobre um homem a suspeita de haver cometido um delito, ele é entregue ad bestias, a multidão.

Assim se converte em pedaços o indivíduo que a civilidade deveria salvar.

Friamente, os juristas classificam a testemunha, junto com o documento. Todos sabem que a prova testemunhal é a mais falaciosa de todas. A lei a rodeia de muitas formalidades destinadas a prevenir os perigos. A ciência jurídica chega ao ponto de considerá-la um mal necessário.

Capítulo 7 – O juiz e o acusado

Quando, num processo de homicídio, se estabelece a certeza de que o acusado matou um homem com um tiro de pistola. Ainda não se conhece todo o necessário para se proferir a condenação. O homicídio não é somente matar. É o querer matar.

É certo que não se pode julgar a intenção a não ser pela ação. É preciso, porém, que consideremos toda a ação, não apenas uma parte dela. A ação humana não é um ato singular, mas todos os atos, em seu conjunto.

Isso significa que, depois de haver reconstruído um fato, o juiz percorreu apenas a primeira etapa do caminho. Para além dessa etapa, o caminho prossegue, porque a vida inteira do acusado ainda está por ser explorada.

O ofício de historiador, que a lei atribui ao juiz, torna-se tão mais impossível quanto mais se reconhece que, para obter a história do acusado, ele precisa superar a desconfiança, que impede o relato sincero. A desconfiança não é vencida senão com a amizade, porém a amizade entre o juiz e o acusado não passa de um sonho.

O processo penal é uma pobre coisa à qual foi confiada uma missão pode demais elevada para poder ser cumprida. Isso não quer dizer que se possa prescindir do processo penal, ma, se temos de reconhecer a sua necessidade, também devemos reconhecer a sua insuficiência. Essa é uma condição para a civilização, que exige que se trate com respeito não apenas o juiz, mas também o réu e até o condenado.

Capítulo 8 – O Passado e o Futuro do Processo Penal

O homem não dispõe de outro meio para resolver o problema do futuro a não ser olhar para o passado.

Se há um passado que se reconstrói para dele fazer-se a base do futuro, no processo penal, esse passado é o do preso. Não existe razão para se estabelecer a certeza de que o delito ocorreu, a não ser para se aplicar a pena. O delito está no passado; a pena está no futuro.

Não basta reprimir os delitos; é necessário preveni-los. O cidadão deve saber primeiro quais serão as consequências de seus atos, para pode conduzir-se. Também é preciso algo que assuste os homens, para salvá-los da tentação.

Há casos em que fica claro que o processo, ou melhor, aquela parte voltada para a reconstrução da história, como todos os seus sofrimentos, com todas as suas angústias, com todas as suas vergonhas, basta para assegurar o porvir do acusado, no sentido de que ele compreendeu o seu erro, e não só o compreendeu como ainda o expiou com aquele peso de sofrimento, de angústia, de vergonha.

Não se deve protestar contra a lei. Estou de acordo com isto. Contra a necessidade, não cabem protestos. Mas não se pode ocultar que direito e processo são uma pobre coisa e que é da consciência dessa limitação que precisamos para que a civilização avance.

O Passado e o Futuro do Processo Penal

Capítulo 9 – A sentença penal

Uma vez reconstruída a história e aplicada a lei, o juiz absolve ou condena. O juiz absolve por insuficiência de provas.

Não que o acusado seja culpado ou inocente. Quando ele é inocente, o juiz declara que o acusado não cometeu o ato, ou que o ato não constitui delito. Porém, nos casos de insuficiência de provas, o juiz declara que nada pode declarar. O processo se encerra com uma inconclusão acerca da matéria de fato. E esta parece a solução mais lógica do mundo.

Os equívocos não atribuíveis à imperícia, à negligência, à imprudência, mas à insuperável limitação humana não dão lugar à responsabilidade de quem os comete. Porém, é esta irresponsabilidade que assinala um outro aspecto em demérito do processo penal. Esse terrível mecanismo, imperfeito e imperfectível, expõe um pobre homem à humilhação de ser levado perante o juiz, investigado, não raro arrancado de sua família e dos seus negócios, prejudicado, para não dizer arruinado, perante a opinião pública, para depois nem sequer ouvir as desculpas de quem, embora sem dolo, perturbou e algumas vezes despedaçou a sua vida.

Não conheço um jurista, com exceção deste que lhes fala, que haja advertido que toda sentença de absolvição envolve um erro judicial.

A coisa julgada não é a verdade, mas é considerada a verdade. Ela é um substitutivo da verdade.

Capítulo 10 – Do cumprimento da sentença

Com a absolvição, o processo termina, por certo. Em caso de condenação, porém, o processo absolutamente não termina. Absolvido, ainda que surjam novas provas contra ele, o acusado permanece seguro. Já o condenado, em certos casos, tem o direito à revisão.

Observando-se bem, a sentença condenatória não é mais do que um diagnóstico.

É costumeiro dizer-se que a pena não tem somente a função de redimir o culpado, mas também a de admoestar as demais pessoas, que poderiam ser tentadas a delinquir e que precisam ser assustadas, a fim de que não o façam.

É necessário se pequenino para compreender que o delito se deve à falta de amor. Os sábios procuram a origem do delito no cérebro, os pequeninos não se esquecem de que, como Cristo disse os homicídios, os roubos, os atos de violência, as falsificações vêm do coração. Para curarmos o delinquente, devemos chegar ao seu coração. E não há outra via par se chegar a ele, senão a do amor. Não se supre a falta do amor, a não se com o amor. A cura de que o preso necessita é a cura do amor.

Não obstante, a pena deve ser um castigo. O castigo não é incompatível com o amor.

Capítulo 11 – Da libertação

O processo termina com a saída da prisão, mas a pena não. O sofrimento e o castigo continuam.

Ao sair da prisão, o ex-condenado crê não ser mais um preso, mas as outras pessoas não o veem assim. Para as pessoas, ele é sempre um preso, um encarcerado. Costumeiramente se diz ex-preso: nesta fórmula residem a crueldade e o engano. Crueldade por se pensar que alguém deve continuar a ser para sempre o que foi.

As pessoas creem que o processo penal termina com a condenação, o que não é verdade. As pessoas pensam que a pena termina com a saída do cárcere, o que tampouco é verdade. As pessoas pensam que a prisão perpétua é a única pena que se estende por toda a vida: eis uma outra ilusão. Senão sempre, pelo menos nove a cada dez vezes, a pena jamais termina. Quem pecou está perdido. Cristo perdoa, os homens não.

Capítulo 12 – Conclusão: além dos domínios do direito

Civilização, humanidade, unidade são uma única coisa: a possibilidade alcançada pelos homens de viver em paz.

O processo penal é o espécime que melhor exemplifica as deficiências e as importâncias do processo.

À medida que tem acesso a uma experiência processual penal mais profunda e refinada, o jurista começa a apreciar as linhas da verdade no esplendor alucinante da admoestação divina.

As misérias do processo penal são um aspecto da miséria fundamental do direito. Não se trata de desvalorizar o direito, mas de evitar que ele seja valorizado em excesso.

Tudo o que se poderia obter, se o direito fosse construído e manejado da melhor maneira possível, seria o respeito de um ser humano pelo outro.

Os homens não podem ser divididos em bons e maus, mas que eles tampouco podem ser divididos em livres e presos, pois fora do cárcere há presos mais presos do que os que estão dentro dele, assim como dentro do cárcere há pessoas mais livres do que as que estão fora dele. Todos estamos presos no nosso egoísmo. Para sermos libertos, talvez não possamos contar com maior ajuda do que a que nos oferecem os pobres fisicamente encerrados numa penitenciária.

Bibliografia:

CARNELUTTI, Francesco – As Misérias do Processo Penal – Campinas: Edicamp, 2002.

Autoria: Diana Fonseca