Ao localizar o princípio de tudo numa Vontade única e irracional, subordinando o ser humano a ela, Arthur Schopenhauer elabora uma “filosofia do pessimismo“, em que o homem, iludido pelas aparências das coisas, está fadado ao sofrimento.
Com influências de Kant, de Platão e do budismo, iniciou uma corrente irracionalista na filosofia, sua obra constitui uma doutrina metafísica da Vontade.
Além de O mundo como Vontade e representação, escreveu A quádrupla raiz da razão suficiente (1813), sua tese de doutorado, Sobre a visão e as cores (1816, influenciado por Johann Wolfgang Goethe), Sobre a Vontade na natureza (1836), Os dois problemas fundamentais da ética (1841), Parerga e Paralipomena (1851).
A Vontade, fundamento de tudo
Assim como outros filósofos alemães do século XIX, Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi influenciado pelo pensamento de Immanuel Kant (1724-1804). Mas, ao contrário de Kant, não defendeu que a razão conhece apenas os fenômenos e é incapaz de compreender o Absoluto, a coisa-em-si. Para Schopenhauer, não é que a razão não alcance o Absoluto; a questão é que este não se coloca como objeto da razão.
O Absoluto é o fundamento da realidade. A esse fundamento Schopenhauer dá o nome de “Vontade”. Ela é responsável pela existência das coisas; manifesta-se, objetiva-se, na multiplicidade do mundo. Uma de suas manifestações é o ser humano, que é corpo e é razão. A razão, entendida como objetivação da Vontade, não tem como compreendê-la, uma vez que a Vontade, por estar na origem da razão, não se coloca como objeto de reflexão racional.
O homem tem consciência dessa Vontade indiretamente. Ao saber que é parte do mundo, do todo, ele também se percebe como originário daquilo que deu existência ao mundo. Na verdade, argumenta Schopenhauer, o homem sente-se integrado ao todo muito antes de ter ideia (ou representação) de si mesmo e do mundo.
O mundo como representação
Arthur Schopenhauer abre sua principal obra, O mundo como Vontade e representação (1819), afirmando: “O mundo é minha representação”. Para ele, “todo objeto, seja qual for a sua origem, é, como objeto, sempre condicionado pelo sujeito, e assim essencialmente apenas uma representação do sujeito”.
Uma boa definição do mundo como representação é dada por j. Ferrater Mora, no Dicionário de filosofia: “A representação é (…) o mundo tal como é dado, em sua inconsistência, em sua enganosa e aparente multiplicidade” (p. 2617). A razão tem do mundo essa noção ilusória porque percebe somente as manifestações da Vontade. Esta, no entanto, não é múltipla; apenas se manifesta como multiplicidade. Em si, a Vontade é única e irredutível.
Quando o homem indaga o que há por trás da aparência do mundo, está em busca desse princípio único. Mas essa indagação não é imediata; ela aparece depois que o homem já intuiu a si mesmo. Em primeiro lugar, a experiência interna humana mostra que o sujeito não é um objeto como os outros; é um ser ativo, cuja vontade se manifesta em seu comportamento.
Esse é o passo inicial: o homem intui sua própria vontade. O passo seguinte é compreender que essa vontade é expressão de uma Vontade maior, única, absoluta, verdadeira. Uma Vontade que dá existência a seu corpo, manifestando-se em todos os seus órgãos. Uma Vontade irracional, cega, inexplicável porque, como afirma Ferrater Mora, “possui somente em si o fundamento de sua explicação”.
Sofrimento, felicidade e contemplação
Por ser um princípio dinâmico, a Vontade estimula o homem incessantemente, mantendo-o numa inquietação que é fonte de sofrimento. A Vontade põe a existência, a vida, mas a vida é incompletude e indefinição; por isso, é sofrimento. Os momentos de felicidade e prazer são fugazes; a dor logo volta a se instalar.
Há um modo, porém, de prolongar um pouco esses momentos. A mesma consciência que percebe a dor de viver pode, pela arte, chegar às primeiras objetivações da Vontade, controlando-a. As verdades eternas revelam-se por meio da arte. Isso se dá em graus variados, que vão da arquitetura à música, passando por escultura, pintura, poesia lírica e poesia trágica. A música é o grau mais alto.
Egoísmo e libertação
Nem mesmo a arte é capaz de proporcionar um prazer duradouro. O homem volta, assim, à sua inquietação original, que o leva ao desejo constante de satisfazer apetites vitais e torna-o egoísta. O direito e a justiça existem para controlar as consequências do egoísmo: com medo de serem punidas, as pessoas evitam cometer injustiças.
Há, porém, uma maneira de o homem libertar-se da dor e do egoísmo: ter consciência de que seu ser participa da essência da realidade, daquilo que existe. Ao saber-se, na essência, idêntico a todos, componente do todo único, o homem pode superar o egoísmo e ter a percepção do sofrimento alheio, e do seu próprio sofrimento, como manifestações de uma dor única. Essa percepção gera a compaixão, capaz de submeter a Vontade e transformá-la em vontade de viver.
Só porque a Vontade chegou a adquirir consciência completa de si mesma”, explica Ferrater Mora em seu Dicionário de filosofia, “pode renunciar a si mesma”, colocando suas aspirações “na resignação, no ascetismo, no autoaniquilamento, na imersão pura no nada”. Nesse estágio, o individualismo é suprimido, dando lugar à serenidade.
Veja um texto de Schopenhauer
A vontade de viver
É muito necessário demonstrar isto, já que todos os filósofos que me precederam (…) fazem consistir a essência do homem e, de certa maneira, seu centro, na consciência cognitiva: todos concebem o Eu (ao qual muitos atribuem uma hipóstase transcendente que chamam “alma”) como dotado essencialmente de conhecimento e de pensamento e, somente depois, de forma secundário e derivada, o consideram dotado de Vontade. Esse antigo erro (…) deve ser desmascarado (…) [e] poderia ser explicado em parte, sobretudo, nos filósofos cristãos, porque todos eles tendiam a estabelecer a maior distância entre o homem e o animal e, paralelamente, entendiam de maneira vaga que essa diferença está na inteligência, não na Vontade. Assim (…) surgiu neles a tendência de fazer da inteligência o essencial e até de representar o Vontade como mera função da inteligência.
A consequência desse erro é a seguinte: sendo notório que a consciência cognitiva é aniquilada com a morte, os filósofos devem admitir que a morte é ou o aniquilamento do homem, hipótese contrária pela qual se resolve nossa convicção interna, ou a duração dessa consciência; mas para aceitar essa ideia é necessária uma fé cega, pois cada um de nós pode convencer-se, por experiência própria, de que a consciência está em completa e absoluta dependência do cérebro e de que é tão difícil conceber uma digestão sem estômago quanto um pensamento sem cérebro. Desse dilema não se pode sair senão pelo caminho que indico na minha filosofia, que é a primeira a colocar a essência do homem não na consciência, mas na Vontade, que não se encontra necessariamente ligada à consciência. (…) Assim, compreendidas essas coisas, chegaremos à convicção de que essa medula, substância íntima, é indestrutível, apesar do aniquilamento certo da consciência com o morte e apesar de sua não-existência antes do nascimento. A inteligência é tão perecível quanto o cérebro, do qual é produto, ou melhor, função. Mas o cérebro, como todo organismo, é o produto ou fenômeno da Vontade, que é o único imortal.
Referência:
Arthur Schopenhauer, O mundo como Vontade e representação, vol. I, cap. XVIII.
Por: Paulo Magno da Costa Torres