Husserl procura resolver o problema de como justificar filosoficamente a existência de um mundo objetivo e comum. E faz a ligação entre a consciência e o mundo objetivo por meie da ideia de intersubjetividade.
Edmund Husserl (1859-1938) foi um alemão de origem judaica vítima do antissemitismo. Discípulo de Franz Brentano, suas pesquisas foram desenvolvidas no campo da fenomenologia. A experiência imediata por meio dos atos de consciência (vivências) é o objeto de análise de sua obra.
Entre suas principais obras destacam-se Pesquisas lógicas (1901), A filosofia como ciência rigorosa (1911) e Ideias diretrizes para uma fenomenologia (1913).
A intersubjetividade: o papel do corpóreo e do espiritual
A intersubjetividade é introduzida no esquema de Edmund Husserl de maneira gradual.
O “eu” – que, no início, é como uma mônada, como um átomo isolado – termina por encontrar-se com outros “eus”. Não se trata de um encontro acidental, contingente, que poderia não ter acontecido; um encontro é sempre relativo a algo essencialmente próprio do “eu” que participa dele. Claro que esse encontro tem um caráter natural, físico: o “eu” que se encontra com outro “eu” é um corpo que se encontra com outro corpo.
No pensamento husserliano, a autêntica individualidade não é a individualidade natural, dependente das condições reais, e sim a espiritual (porque o indivíduo espiritual é aquele que “tem em si mesmo a sua motivação”). Husserl pensa que o “eu” tem o direito de supor que os corpos com os quais continuamente se encontra possuem um modo de ser análogo ao seu. Para ele, não se pode ter, do outro, uma intuição direta, e sim uma “apreensão por analogia”.
O “eu” a que se refere Husserl só pode ser, o priori, aquele que experimenta o mundo “enquanto está em comunidade com outros semelhantes e é membro de uma comunidade de determinadas mônadas, orientada a partir dele”. Dito de outra maneira, um pouco menos técnica: o “eu” (uma pessoa) pressupõe que existam outras pessoas no mundo; não só como corpos e entre objetos, mas também como dotadas de consciência essencialmente igual à do “eu” que as percebe.
Voltando à terminologia leibniziano-husserliana: a justificativa do mundo da experiência objetiva implica uma justificativa igual da existência das outras mônadas. A própria ideia de um único mundo objetivo refere-se à comunidade intersubjetiva Os outros, os demais, não são um elemento exterior, prescindível. Ao contrário, ao longo da obra de Husserl vão adquirindo importância, ganhando densidade até, finalmente, serem vistos quase como algo transcendental que torna possível e pensável cada “eu”, cada sujeito.
A fenomenologia transcendental
A questão que Edmund Husserl apresenta na obra A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental é a profundidade da crise das ciências.
O problema é o modelo de objetividade adotado em certo momento pelo pensamento ocidental e que se tornou um verdadeiro obstáculo para um adequado tratamento do subjetivo.
Não basta debater as funções ou a utilização da ciência. Não se trata de centrar a discussão no terreno de como a ciência é usada ou se os cientistas são responsáveis por algo, deixando de lado a questão do que é a ciência. O que está em jogo é o seu sentido, como conhecimento, e sua importância para a vida humana.
Husserl acusa a ciência de ter renunciado à própria cientificidade, reduzindo a verdade à pura facticidade. Em outras palavras, acusa-a de defender uma imagem insustentavelmente estreita da racionalidade.
Para Husserl, o ideal da razão é a atitude que define a filosofia autêntica. Todo ideal, precisamente pela ambição histórica que o define, precisa ser conciliado a cada momento. O problema está em como conciliar o racionalismo de modo que, aplicado ao saber, permita superar a crise da ciência europeia.
Leitura de um texto de Husserl
Sobre a incapacidade da ciência em autocompreender-se
Na segunda metade do século XIX, a visão de mundo do homem moderno deixou-se determinar exclusivamente pelas ciências positivas e deixou-se deslumbrar pela prosperidade que elas tornaram possível.
Isso significou, paralelamente, um desvio indiferente em relação às questões realmente decisivas para uma humanidade autêntica. Uma simples ciência de fatos faz um simples homem de fatos.
(…) O que a ciência tem a dizer sobre a razão e a sem-razão, sobre nós homens, sujeitos dessa liberdade? A simples ciência dos corpos materiais, evidentemente, nada tem a dizer, uma vez que abstraiu tudo o que era subjetivo. Por outra parte, no que diz respeito à ciência do espirito, que em todas as suas disciplinas, especiais ou gerais, consideram o homem na sua existência espiritual e, portanto, na perspectiva de sua historicidade, seu caráter rigorosamente cientifico exige, segundo dizem, que o sábio elimine cuidadosamente toda possível posição valorativa, todo questionamento sobre a razão ou sem-razão da humanidade e das características culturais dela que constituem o tema de sua pesquisa. A verdade científica, objetiva, é exclusivamente a comprovação daquilo que o mundo, tanto científico quanto espiritual, efetivamente é. Entretanto, o mundo e a existência humana nele podem verdadeiramente ter algum sentido se as ciências admitirem como verdadeiro somente o que pode ser comprovado objetivamente dessa forma, se a história não puder ensinar mais do que isto: todas as formas do mundo espiritual, todas as obrigações vitais, todos os ideais, todas as normas que, dependendo do caso, os homens sustentam são formadas e desfeitas como ondas passageiras: sempre foi assim e sempre será; sempre a razão deve converte-se em sem-razão e a boa ação, em calamidade? Podemos ficar satisfeitos com isso? Podemos viver neste mundo, cuja história não é outra coisa senão uma perpétua concatenação de impulsos ilusórios e amargas decepções?
E. Husserl, A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental.
Por: Paulo Magno Torres