Friedrich Hegel (1770-1831), apropriando-se criativamente da tradição filosófica, confecciona um complexo sistema filosófico de natureza metafísica, com o qual conjuga ser e devir em um itinerário histórico dialético e racional, cujo fim é o saber absoluto.
A filosofia de Hegel consiste em um sofisticado sistema metafísico, cuja ambição é proporcionar um fundamento explicativo para o conjunto da realidade, revelando, assim, um saber completo e definitivo. Nesse sentido, utiliza a diversificada herança filosófica ocidental, reivindicando a ultrapassagem conceitual de seus impasses e a sua consumação em um conhecimento pleno.
Seu pensamento filosófico remete, em larga medida, a um problema teórico legado pela filosofia pré-socrática: a tensão entre a noção parmenidiana de ser e o conceito heraclitiano de devir. No princípio de nossos estudos filosóficos, constatamos que Parmênides de Eleia declara que o ser é e que o não ser não é, quer dizer, não há transições ou intersecções entre ser e não ser. Caracterizando o ser como uno, eterno e imutável, esse pensador confere realidade exclusiva ao ser e se recusa a conceder valor de verdade às transformações que observamos no mundo. Por outro lado, Heráclito de Éfeso compreende a realidade unicamente como devir, o vir a ser incessante no qual as coisas transformam-se em seus contrários – o dia converte-se em noite, a saúde, em doença, a vida, em morte: nada no mundo é estável, ou melhor, apenas a mudança é permanente, conduzida pela racionalidade universal.
As tentativas de compatibilização entre essas noções de ser e de devir iniciam-se ainda no período pré-socrático – o atomismo de Demócrito de Abdera é um bom exemplo – e estendem-se pelos séculos de história da filosofia. Hegel, portanto, não é o primeiro a buscar essa conciliação conceitual. Sua originalidade reside na solução filosófica oferecida à questão, na qual o ser é inseparável do devir: o ser produz constantemente a si mesmo, percorrendo o trajeto histórico e dialético do vir a ser em direção à realização de sua forma absoluta. Para esse filósofo, o real é o racional, e o racional é o real: a realidade é um processo racional em que o ser avança dialeticamente na construção de si, com o fim de atingir sua completa expressão através do devir.
Essas informações, porém, descontextualizadas do sistema filosófico hegeliano são pouco compreensíveis. O que significa, afinal, sentenciar que o ser se explicita no devir? Por que o real é o racional, ao mesmo tempo que o racional é o real? Para responder satisfatoriamente a essas indagações, é preciso penetrar na filosofia de Hegel e, para tanto, um ponto de partida interessante é a inspeção de sua conceituação sobre a dialética.
Em Hegel, a dialética não é simplesmente um método para a conquista do conhecimento, mas sim um aspecto essencial e imanente à constituição da realidade, ou seja, a realidade é dialética. No prefácio de seu mais conhecido livro, Fenomenologia do Espírito, o filósofo recorre a uma imagem orgânica do mundo vegetal para exemplificar o processo dialético do real.
Nessa passagem, o autor descreve a transformação do botão em flor e da flor em fruto – o botão desaparece na flor tanto quanto a flor o refuta; e a flor desaparece no fruto tanto quanto o fruto a refuta. Botão, flor e fruto são, de algum modo, incongruentes entre si, porém, ao mesmo tempo, pertencem a uma unidade orgânica: a planta se constitui em um desenvolvimento no qual cada uma de suas etapas é naturalmente marcada por contradições, superadas em sua ultrapassagem para a etapa seguinte. São momentos distintos e, em certo sentido, incompatíveis, embora racionalmente articulados na explicitação da totalidade, que é a realização da planta.
O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer ser um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. É essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo.
HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 26.
Essa exemplificação reporta-se à chamada tríade da dialética hegeliana: tese, antítese e síntese. A tese consiste em uma situação ou condição inicial do movimento dialético, caracterizada pela contradição, presença da negatividade na- quilo que é ou, em linguagem plenamente filosófica, do não ser no ser. Essa negação interna contida na tese é a antítese. A ultrapassagem dessa contradição efetua-se na síntese, que nega simultaneamente a tese e a antítese, resguardando-as sob uma forma superior de realidade.
No exemplo em questão, o botão é a tese, comportando em si a negatividade, a antítese, que se expressa no fato de que ele é não flor. Com o desabrochar da flor, processa-se a síntese que executa a negação do botão e, no mesmo movimento, preserva-o sob a figura mais plena da flor. A flor, por seu turno, não é apenas síntese, mas também uma nova tese, envolvendo em si uma antítese, a contradição do não fruto. O surgimento do fruto, então, expressa outra síntese, refutando e preservando as etapas anteriores em um grau dialeticamente avançado de efetivação da planta. Esses sucessivos movimentos dialéticos conduzem a planta, por intermédio de suas contradições e de suas superações, à plenitude de sua realidade. Em outros termos, o ser da planta manifesta-se crescentemente em seu devir dialético, que harmoniza seus momentos distintos e contraditórios em sua completa realização.
Outro exemplo muito conhecido da dialética hegeliana encontra-se nas páginas do capítulo IV de sua Fenomenologia do espírito, quando o filósofo explica as relações entre senhor e escravo. No confronto entre consciências de si, uma deseja a nulificação da outra como testemunha de seu reconhecimento. Nessa luta, o vencedor torna-se senhor, contrastando sua liberdade com a condição de objeto do perdedor, convertido em escravo para preservar sua vida. É na superação das contradições dessa relação que se avança para a consciência universal.
De acordo com o sistema filosófico hegeliano, esse itinerário dialético não se verifica somente em alguns aspectos do mundo – especificamente no crescimento da planta e em outros fenômenos particulares do real –, mas no conjunto da realidade, ou melhor: a totalidade do devir (o vir a ser) é o percurso racional e dialético do ser no horizonte de sua perfeita realização. O devir consiste na autoconstrução do espírito.
Na filosofia de Hegel, o que significa a palavra espírito? O termo utilizado pelo filósofo, em língua alemã, é geist. Considerando-se sua aplicação no sistema filosófico hegeliano, geist pode ser adequadamente traduzido por espírito, ideia, razão e ser. É o princípio abstrato que se desdobra em todas as coisas que existem, que se explicita progressivamente no vir a ser da realidade. Dessa forma, o devir é a exteriorização do espírito, do ser, em sucessivas formas, as posteriores sempre mais perfeitas que as anteriores. Universo, natureza, humanidade, enfim toda a realidade existente, são a autoprodução do espírito ou razão, orientados para a sua realização absoluta.
Por que falamos em autoprodução do espírito? Porque, segundo Hegel, o real não corresponde a uma criação distinta e separada de seu autor, ao modo, digamos, de objetos confeccionados por um artesão, que são exteriores ao seu criador, ou seja, são artefatos diferentes do artesão. Diferentemente, na produção do mundo o espírito exterioriza a si próprio ou, em palavras incisivas, universo natureza e humanidade são o espírito, que executa o longo itinerário de sua revelação. Nesse sentido é que o sistema hegeliano se define em base profundamente metafísica, pautando-se pela pressuposição do ser além da dimensão fisicamente observável. Por essa primazia absoluta da ideia – razão ou espírito –, muitos estudiosos denominam a filosofia de Hegel de idealismo absoluto.
Ponto de partida interessante para compreender melhor essa complexa metafísica hegeliana, pelo menos em seus elementos fundamentais, está nas ponderações do filósofo acerca da unidade originária e contraditória entre ser e nada, apresentada em seu livro intitulado Ciência da lógica.
Nesse texto, Hegel afirma que o espírito em si, inicialmente, é o ser puro, absoluto, concepção que pode ser expressa na sentença o ser é tudo. Esse ser puro, entretanto, por sua abrangência limitada, não possui qualidades definidoras ou determinantes, isto é, trata-se de um ser de pura indeterminação, que abriga em si o seu contrário. A pura indeterminação do ser implica a conclusão de que um ser absolutamente indeterminado é o nada, ou seja, o ser puro, absoluto e sem qualidades é o nada. Recorrendo aos vocábulos da dialética hegeliana, é razoável declarar que da tese o ser é tudo, e de sua antítese, o ser é nada, emerge a síntese que, simultaneamente, nega e conserva, superando-as no movimento do vir a ser. Processa-se, desse modo, o devir que reproduz a tríade tese-antítese-síntese em etapas nas quais o espírito desvela-se progressivamente a caminho de sua verdade absoluta.
Nessa lógica dialética, o espírito projeta-se primeiramente em seu ser outro, a natureza, e a natureza, que refuta o espírito em si, é, por seu turno, superada na dimensão da cultura. Com a esfera humana da cultura, inicia-se o vir a ser do espírito pela história da humanidade. Essas observações permitem uma importante constatação: a história situa-se no núcleo da metafísica hegeliana.
Referência:
HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 26.