Nietzsche se propõe a fazer uma crítica dos valores morais que compõem a cultura. Mais do que isso, ele coloca em questão esses valores e sugere transformá-los por completo.
O alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) formou-se como filólogo clássico em Bonn. Chegou à filosofia por meio da leitura de Arthur Schopenhauer, o que, com a admiração por Richard Wagner e a paixão pelo mundo grego, determinou, em boa parte, seus primeiros escritos.
Sua filosofia constitui uma exaltação de todos os valores vitais e é uma crítica da cultura, especialmente da tradição filosófica e do cristianismo — que, segundo ele, levaram o homem à submissão e impediram-no de se desenvolver como um “espírito livre”. Centralizou sua doutrina em quatro pontos fundamentais: a vontade de potência, o super-homem, a autossuperação da moral e o eterno retorno.
A obra de Nietzsche supôs um ponto de inflexão na história da filosofia, uma vez que deu lugar ao desenvolvimento de uma corrente de pensamento que teve uma enorme importância no século XX. Algumas de suas obras mais decisivas são A origem da tragédia (1872), A gaia ciência (1882 e 1887),
Aforismos para a afirmação da vida
Friedrich Nietzsche (1844-1900), como Bento de Espinosa (1632-1677) – de quem foi leitor entusiasmado e com cujo sistema rompeu, posteriormente faz de sua filosofia uma afirmação da vida, da vontade de viver.
Em tomo desse núcleo ele desenvolveu um pensamento demolidor em relação à tradição, em todas as suas manifestações: moral, religiosa, científica, filosófica. Para Nietzsche, todas elas deram sua contribuição para oprimir o ser humano das mais diversas maneiras.
Suas críticas à tradição não se limitaram, porém, ao conteúdo da filosofia que produziu. Elas também se apresentam no aspecto formal dessa produção.
Nietzsche não elaborou um sistema filosófico no sentido tradicional do termo. Seus textos, de reconhecido valor literário, são, em parte, fragmentados. Pode-se dizer que Nietzsche fala por aforismos, sem a preocupação de elaborar conceitos e encadeá-los. Mas esses fragmentos compõem uma unidade, uma filosofia de novo tipo, liberada das amarras do encadeamento de razões.
Natureza e valores para Nietzsche
Estudioso da física, da química e principalmente da biologia, Friedrich Nietzsche se baseia nelas para compreender o homem, seu comportamento, suas ações. Interessa-lhe o ser humano partícipe da natureza, submetido a suas forças e a suas leis, componente do mundo. Assim, não é de um homem abstrato ou idealizado que ele fala, mas do homem real.
Esse homem real, desde o nascimento, é submetido a valores – o elemento formador da cultura. Os valores da cultura europeia, expressos no cristianismo, no socialismo e no igualitarismo democrático, compõem uma moral que precisa ser superada. Essa superação, por sua vez, não pode se dar na esfera limitada pelas noções de bem e de mal – para Nietzsche, manifestações de uma “vitalidade descendente”; deve ir além dessa esfera, alcançando a “vitalidade ascendente”, identificada com a vontade de viver ou vontade de potência.
O ideal do super-homem
Superar os valores significa também superar o homem submetido a eles. Preso à suposta objetividade da ciência e ao ressentimento moral cristão, o homem está sob o domínio da “moral do escravo“, em que se prezam os valores que Nietzsche denomina “inferiores”: humildade, bondade, piedade, satisfação, amor ao próximo.
Esses valores são falsos e, ao contrário do que se acredita, controlam o homem em vez de libertá-lo.
A liberdade pressupõe o abandono da condição de escravo. É preciso tornar-se senhor, tomar-se potência. E isso implica a adoção de novos valores: a personalidade criadora no lugar da objetividade, a virtu em vez da bondade, o orgulho substituindo a humildade, o risco e não a satisfação, o amor ao distante e não o amor ao próximo.
O homem-senhor, o homem-potência, é o que Nietzsche chama “super-homem”: aquele capaz de assumir riscos, ser criativo, orgulhar-se de si, amar o distante e ter a virtu renascentista. A moral do super-homem, assim, é a negação da moral do escravo.
Ele tem a moral do senhor, isto é, a vontade de potência, que abole a culpa e o castigo, que afirma e dá sentido à vida.
Nietzsche e a morte de Deus
Ao proceder à transvaloração dos valores, Nietzsche os entende como “humanos, demasiado humanos“. Isso significa que é o homem que deve dar sentido à própria vida. Até porque, afirma o filósofo, divindades não existem. A vida é aqui. E agora.
“Deus está morto”
“Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós!”, escreve Nietzsche em A gaia ciência, § 125. E se, em seguida, pergunta “como haveremos de nos consolar” – pressupondo luto no final do parágrafo glorifica o ato, qualificando-o como o “mais grandioso” de todos os tempos, aquele que prenuncia um futuro melhor, “e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a história até hoje!”.
Ao anunciar a morte de Deus, Friedrich Nietzsche (1844-1900), na verdade, afirma a morte da metafísica, noção filosófica da qual o cristianismo se apossou e que postula a existência de outro mundo além deste, um mundo suprassensível que seria a origem, a referência e a finalidade de tudo aquilo que vive na Terra. A religião, ao prometer nele a redenção, segundo Nietzsche, manipula os fracos, impondo-lhes a resignação e a renúncia.
Em relação à filosofia, a afirmação da existência desse suposto mundo suprassensível, inacessível aos sentidos, desqualifica os sentidos, privilegiando a pretensa superioridade da razão. A esse procedimento racional, lógico, abstrato, Nietzsche opõe a criatividade afirmativa, a multiplicidade da vida, a vontade de potência.
O eterno retorno
A doutrina do eterno retorno, explica Scarlett Marton em Nietzsche, a transvaloração dos valores, insere-se no contexto da cosmologia nietzscheana. Para Nietzsche, só há um mundo: este. E ele é eterno e infinito. Todavia, as forças que o compõem são finitas. Como o tempo é infinito, só duas possibilidades se abrem: “ou o mundo atingiria um estado de equilíbrio durável ou os estados por que ele passasse se repetiriam”, escreve Scarlett.
No sistema do filósofo, porém, a força é dinâmica: busca tomar-se ainda mais forte a cada instante. Por isso, não pode haver equilíbrio nem estabilidade. O que há é o combate incessante, com a vontade de potência impulsionando a força ao domínio sobre as demais. Diante desse quadro, resta a alternativa da repetição.
‘Todos os dados são conhecidos: finitas são as forças, finito é o número de combinações entre elas, mas o mundo é eterno. Daí se segue que tudo já existiu e tudo tomará a existir. Se o número dos estados por que passa o mundo é finito e se o tempo é infinito, todos os estados que hão de ocorrer no futuro já ocorreram no passado.”
Scarlett Marton. Nietzsche, a transvaloração dos valores, p. 56.
Ao homem — que pela doutrina do eterno retorno está condenado a viver repetidas vezes, “sem razão ou objetivo” — não cabe reclamar desse destino, mas aceitá-lo e amá-lo. Nietzsche chama essa aceitação de amor fati (amor ao destino), pelo qual o ser humano, ciente de que não há poder transcendente que o ampare, dá sentido à própria vida. Isso implica amar cada momento como ele se apresenta, “eternizando” o presente.
É desse modo que o homem supera as antigas oposições metafísicas (essência/aparência, sensível/inteligível, mutável/permanente) e se toma consciente de estar integrado ao cosmo. Esse processo o conduz à criação de novos valores, ascendentes, e ao fazer isso, nas palavras de Scarlett, “ele intervém num momento qualquer do processo circular [o eterno retorno], que é o mundo, e assim recria o passado e transforma o futuro”
Por: Paulo Magno da Costa Torres