A reflexão filosófica, tal como conhecida e estudada, nasceu na Grécia antiga no século VI a.C., com os filósofos que antecederam Sócrates.
Para entender o nascimento da filosofia no mundo grego, é preciso, inicialmente, examinar uma questão fundamental: o que caracteriza a originalidade do emergente pensamento filosófico?
Diferentemente das narrativas mitológicas, sustentadas pela crença na supranaturalidade, a atitude filosófica converte os temas da origem e da ordem do mundo à condição de problemas a serem resolvidos estritamente pela inteligência humana.
A atividade filosófica compromete-se com a busca pelo conhecimento exclusivamente racional da realidade, sem recorrer, portanto, à credulidade prévia nos seres divinos e à aceitação de pressupostos sobrenaturais.
Como ocorreu
São muitos os fatores históricos que costumam ser indicados como oportunos ao nascimento da filosofia: a humanização dos deuses gregos, as viagens marítimas, o desenvolvimento de uma economia comercial urbana, a utilização em larga escala da moeda, a criação de um calendário laico, o uso do alfabeto e a atividade política.
A projeção de traços humanos nas divindades gregas ou a concepção dos deuses à imagem dos seres humanos facilita a autonomia humana em relação à religiosidade, algo que constituiria importante aspecto da especulação filosófica.
No mesmo sentido, atuam as viagens marítimas, que revelam a discrepância entre os relatos míticos e as observações geográficas efetuadas, e a adoção de um calendário desvinculado da religião, organizado com base em eventos humanos e regularidades da natureza.
A economia comercial urbana, a circulação generalizada da moeda e o uso do alfabeto também contribuem para o desenvolvimento de um pensamento abstrato, por serem atividades que exigem, em si mesmas, razoável nível de abstração.
A articulação entre esses aspectos históricos e sua participação no contexto sociocultural que explica o surgimento da filosofia apenas se tornam realmente compreensíveis no universo da pólis grega.
Nos reinos orientais da Antiguidade e no início da história antiga grega, o poder administrativo concentra-se na figura do monarca que, legitimado por sua suposta descendência dos deuses, exerce verticalmente sua autoridade e representa a noção de permanência da ordem social tecida pelas divindades.
As cidades-Estado gregas, formadas no período arcaico e consolidadas em configurações democráticas ou oligárquicas na época clássica da Antiguidade helênica (séculos V a.C. e IV a.C.), instituem uma novidade histórica. Trata-se do surgimento da política, compreendida como corpo cívico no qual os cidadãos, em igualdade de condições, apresentam propostas, debatem e participam diretamente das decisões de sua comunidade.
Nas assembleias das cidades gregas, o discurso racional assume o plano principal dos debates, pois os temas da coletividade são discutidos por cidadãos que, para a defesa de seus pontos de vista, dependem apenas da qualidade de suas argumentações.
Neste domínio público da cidadania, com suas práticas de pensamento separadas da religiosidade, transcorre a racionalização das relações sociopolíticas e a constituição de uma cultura propensa à dessacralização do saber.
Pode-se constatar que o nascimento da filosofia – investigação racional do cosmos e, posteriormente, das questões humanas – corresponde ao exercício da política na dimensão do logos (razão).
Os primeiros filósofos
Os primeiros filósofos gregos dedicaram-se ao exame da physis, termo convencionalmente traduzido por natureza. Entretanto, é preciso notar que o teor semântico de physis é mais vasto e profundo, se comparado ao significado que nossa cultura contemporânea atribui à expressão ‘natureza’.
Physis é o princípio originário, fundamento de tudo o que existe (a arqué), o princípio interno responsável pela geração e pela organização do cosmos e de seus diversos componentes. É a realidade subjacente à nossa experiência, ou seja, o que é primário, fundamental e persistente, contrastando, então, com aquilo que é secundário, derivado e transitório.
Esse entendimento mínimo sobre a noção grega de physis auxilia na compreensão da originalidade da postura de Tales de Mileto (625-586 a.C.), identificado como o personagem inaugural da filosofia pela maioria dos historiadores. Tales afirma que a água é o princípio originário, a unidade primordial do cosmos e da diversidade que encontramos em seu interior. Para o primeiro filósofo, portanto, a água é a physis, o princípio fundamental, presente na totalidade daquilo que existe.
Uma asserção desse tipo parece pouco relevante e mesmo extravagante sob o prisma contemporâneo, motivo pelo qual é necessário sublinhar o ineditismo de Tales. Ao declarar tal sentença, esse pensador esboça uma explicação racional acerca do cosmos, excluindo os pressupostos divinos da ordenação do mundo e inaugurando a problematização filosófica.
Dessa forma, Tales inicia a filosofia ao converter os temas tradicionais da mitologia em problemas para os quais se devem oferecer soluções racionais. Sua declaração de que a água é a unidade fundamental do cosmos contém, implicitamente, a indicação de relevantes questionamentos filosóficos, tais como:
- Qual é o princípio originário do cosmos?
- Como se processam a geração, o crescimento e a corrupção dos seres?
- O que permanece em meio às múltiplas transformações que observamos no mundo?
Tais questões, pensadas rigorosamente como problemas filosóficos, exigem a elaboração de respostas demonstradas de modo racional e, de maneira diversa dos mitos, cujo valor de verdade é postulado com base na autoridade da tradição, as teses autenticamente filosóficas – que pretendem se estabelecer como explicações racionais da realidade – são avaliadas de forma crítica sob a perspectiva da razão.
O mito reivindica a veracidade de seus relatos na reverência aos ancestrais, em seu viés religioso e na autoridade de quem os pronuncia, excluindo a postura crítica daqueles que acolhem seus ensinamentos. Já a tese filosófica sustenta-se unicamente em sua racionalidade e, sendo assim, é passível de ser criticada de modo racional.
Uma afirmação filosófica como a de Tales, em razão de sua pretensão racional, é sujeita a críticas, a contra-argumentações, a reformulações e correções racionalmente sugeridas. A nascente atividade filosófica, portanto, introduz na cultura grega e, em sentido mais amplo, na cultura ocidental, um espaço crítico e racional de diálogos, debates e argumentações, isto é, a filosofia ultrapassa os limites do pensamento mitológico e realiza-se na esfera do logos.
Por: Wilson Teixeira Moutinho