Este texto tem a finalidade de apresentar, de forma sintetizada, os princípios pedagógicos que têm orientado os processos pedagógicos intencionais e sistematizados de construção do conhecimento a partir do desenvolvimento, e portanto, das transformações por que têm passado as bases materiais de produção.
Para tanto, situará rapidamente este processo no taylorismo/fordismo e nas novas formas de organização e gestão do trabalho mediadas pelas novas tecnologias, para ater-se ao que seria uma proposta comprometida com a emancipação humana: a produção do conhecimento a partir da perspectiva pedagógica socialista.
É necessário, contudo, esclarecer que, se a pedagogia socialista só será possível em outro modo de organização da vida social e produtiva, as contradições entre capital e trabalho, cada vez mais acentuadas no regime de acumulação flexível1, têm permitido avanços nesta direção.
Assim é que, por demanda do próprio capitalismo, categorias cuja análise permaneciam restritas aos textos dos autores socialistas, clássicos e contemporâneos, tais como a transdisciplinaridade, a politecnia, a integração entre teoria e prática, a relação entre parte e totalidade, entre o lógico e o histórico, hoje estão presentes no ideário da nova pedagogia do capitalismo, a pedagogia das competências. Estas categorias, que raramente puderam se materializar, e mesmo assim em práticas pedagógicas alternativas, hoje atravessam textos oficiais- diretrizes e parâmetros curriculares-, materiais didáticos e discursos dos mais diversos professores, especialistas e dirigentes que atuam no campo da educação.
Esta apropriação, pela pedagogia das competências, sempre do ponto de vista do capital, de concepções que têm sido elaboradas no âmbito da pedagogia socialista, estabeleceu uma tal ambiguidade nos discursos e nas práticas, que muitos profissionais e políticos da educação têm sido levados a imaginar que, a partir das novas demandas do capital no regime de acumulação flexível, as políticas e propostas pedagógicas de fato passaram a contemplar os interesses dos que vivem do trabalho, do ponto de vista da democratização.
Esta contradição, portanto, tem se constituído em possibilidade de alguns avanços, por outro lado, é perversa, porque esconde, por trás de um discurso pedagógico aparentemente homogeneizador, as radicais diferenças que existem entre os interesses e necessidades do capital e do trabalho.
Torna-se necessário, portanto, desemaranhar este cipoal, estabelecendo os limites da pedagogia das competências para que se possa avançar na construção teórico-prática, nos espaços da contradição, de uma pedagogia de fato comprometida com a emancipação humana.
As mudanças no mundo do trabalho e as novas demandas de educação
As profundas modificações que têm ocorrido no mundo do trabalho trazem novos desafios para a educação. O capitalismo vive um novo padrão de acumulação decorrente da globalização da economia e da reestruturação produtiva, que passa a determinar um novo projeto educativo para os trabalhadores, independentemente da área, das atribuições ou do nível hierárquico em que atuem.
Como resposta às novas exigências de competitividade que marcam o mercado globalizado a exigir cada vez mais qualidade com menor custo, a base técnica de produção fordista, que dominou o ciclo de crescimento das economias capitalistas no pós 2ª guerra até o final dos anos sessenta, vai aos poucos sendo substituída por um processo de trabalho resultante de um novo paradigma tecnológico apoiado essencialmente na microeletrônica, cuja característica principal é a flexibilidade. Este movimento, embora não seja novo, uma vez que se constitui na intensificação do processo histórico de internacionalização da economia, reveste-se de novas características, posto que assentado nas transformações tecnológicas, na descoberta de novos materiais e nas novas formas de organização e gestão do trabalho.
Estabelecem-se novas relações entre trabalho, ciência e cultura, a partir das quais constitui-se historicamente um novo princípio educativo, ou seja, um novo projeto pedagógico através do qual a sociedade pretende formar os intelectuais/trabalhadores, os cidadãos/produtores para atender às novas demandas postas pela globalização da economia e pela reestruturação produtiva. O velho princípio educativo, decorrente da base técnica da produção taylorista/fordista vai sendo substituído por um outro projeto pedagógico determinado pelas mudanças ocorridas no trabalho.
A pedagogia orgânica ao taylorismo/fordismo tinha por finalidade atender a uma divisão social e técnica do trabalho marcada pela clara definição de fronteiras entre as ações intelectuais e instrumentais, em decorrência de relações de classe bem definidas que determinam as funções a serem exercidas por dirigentes e trabalhadores no mundo da produção, o que resultou em processos educativos que separavam a teoria da prática.
O processo produtivo, por sua vez, tinha como paradigma a organização em unidades fabris que concentram grande número de trabalhadores distribuídos em uma estrutura verticalizada que se desdobra em vários níveis operacionais, intermediários (de supervisão) e de planejamento e gestão, cuja finalidade é a produção em massa de produtos homogêneos para atender a demandas pouco diversificadas. A organização da produção em linha expressa o princípio taylorista da divisão do processo produtivo em pequenas partes onde os tempos e movimentos são padronizados e rigorosamente controlados por inspetores de qualidade e as ações de planejamento são separadas da produção.
Era preciso, portanto, qualificar trabalhadores que atendessem as demandas de uma sociedade cujo modo dominante de produção, a partir de uma rigorosa divisão entre as tarefas intelectuais (dirigentes) e as operacionais, caracterizava-se por tecnologia de base rígida, relativamente estável. A ciência e a tecnologia incorporadas ao processo produtivo, através de máquinas eletromecânicas que trazem em sua configuração um número restrito de possibilidades de operações diferenciadas que exigem apenas a troca de uns poucos componentes, demandavam comportamentos operacionais pré-determinados e com pouca variação. Compreender os movimentos necessários a cada operação, memorizá-los e repeti-los ao longo do tempo, não exige outra formação escolar e profissional que o desenvolvimento da capacidade de memorizar conhecimentos e repetir procedimentos em uma determinada sequência.
A pedagogia, em decorrência, propõe conteúdos que, fragmentados, organizam-se em sequências rígidas; tendo por meta a uniformidade de respostas para procedimentos padronizados, separa os tempos de aprender teoricamente e de repetir procedimentos práticos e exerce rigorosamente o controle externo sobre o aluno. Esta pedagogia responde adequadamente às demandas do mundo do trabalho e da vida social, que se regem pelos mesmos parâmetros das certezas e dos comportamentos que foram definidos ao longo do tempo como aceitáveis.
Do paradigma taylorista/fordista decorrem várias modalidades de fragmentação no trabalho pedagógico, escolar e não escolar, que se constituem na expressão da divisão entre classes sociais no capitalismo: a dualidade estrutural, a partir da qual se definem tipos diferentes de escola, segundo a origem de classe e o papel a elas destinado na divisão social e técnica e trabalho; a fragmentação curricular, que divide o conhecimento em áreas e disciplinas trabalhadas de forma isolada que passam a ser tratadas como se fossem autônomas entre si e da prática social concreta, a partir da pretensa divisão da consciência sobre a ação, a partir do que a teoria se supõe separada da prática; a expressão desta fragmentação é a grade curricular, que distribui as diferentes disciplinas com suas cargas horárias por séries e turmas de forma aleatória, supondo que a unidade rompida se recupere como consequência “natural” das práticas curriculares, ficando por conta do aluno a reconstituição das relações que se estabelecem entre os diversos conteúdos disciplinares; as estratégias taylorizadas de formação de professores, que promovem capacitação parcelarizada, por temas e disciplinas, agrupando os profissionais por especialidade, de modo a nunca discutir o trabalho pedagógico em sua totalidade, a partir do espaço de sua realização: a escola;o plano de cargos e salários, que prevê a contratação dos profissionais da educação por tarefas, ou jornadas de trabalho, e até mesmo por aulas ministradas, de modo que eles se dividem entre diversos espaços, sem desenvolver sentido de pertinência à escola; quando se representam, os professores evidenciam identidade com a área ou disciplina de sua formação, e não de professores da escola;a fragmentação do trabalho dos pedagogos, nas distintas especialidades, que foram criadas pelo Parecer 252/69 do Conselho Federal de Educação, praticamente superadas pelas tentativas de unificação nas agências de formação e nas escolas; esta fragmentação agora foi reeditada pela Lei 9394/96, no art 64.
O trabalho pedagógico, assim fragmentado, respondeu, e continua respondendo, ao longo dos anos, às demandas de disciplinamento do mundo do trabalho capitalista organizado e gerido segundo os princípios do taylorismo/fordismo, em três dimensões: técnico, político e comportamental.
A globalização da economia e a reestruturação produtiva, enquanto macroestratégias responsáveis pelo novo padrão de acumulação capitalista, transformam radicalmente esta situação, imprimindo vertiginosa dinamicidade às mudanças que ocorrem no processo produtivo, a partir da crescente incorporação de ciência e tecnologia, em busca de competitividade. A descoberta de novos princípios científicos permite a criação de novos materiais e equipamentos; os processos de trabalho de base rígida vão sendo substituídos pelos de base flexível; a eletromecânica, com suas alternativas de solução bem definidas, vai cedendo lugar à microeletrônica, que assegura amplo espectro de soluções possíveis desde que a ciência e a tecnologia, antes incorporadas aos equipamentos, passem a ser domínio dos trabalhadores; os sistemas de comunicação interligam o mundo da produção.
As novas demandas de qualificação, portanto, referem-se a um trabalhador de novo tipo, que atue na prática a partir de uma sólida base de conhecimentos científico-tecnológicos e sociohistóricos, e ao mesmo tempo acompanhe a dinamicidade dos processos e resista ao “stress”. Ao mesmo tempo, as novas tecnologias exigem cada vez mais a capacidade de comunicar-se adequadamente, através do domínio das formas tradicionais e novas de linguagem, incorporando, além da língua portuguesa, a língua estrangeira, a linguagem informática e as novas formas trazidas pela semiótica; a autonomia intelectual, para resolver problemas práticos utilizando os conhecimentos científicos, buscando aperfeiçoar-se continuamente; a autonomia moral, através da capacidade de enfrentar as novas situações que exigem posicionamento ético; finalmente, a capacidade de comprometer-se com o trabalho, entendido em sua forma mais ampla de construção do homem e da sociedade, através da responsabilidade, da crítica, da criatividade.
Embora no âmbito do processo produtivo como um todo a tendência seja a precarização do trabalho, do ponto de vista da concepção de qualificação para o trabalho, há avanços.
Solidamente fundamentada sobre a educação básica, a qualificação não repousa mais sobre a aquisição de modos de fazer, deixando de ser concebida, como o faz o taylorismo/fordismo, como conjunto de atributos individuais, predominantemente psicofísicos, centrados nos modos de fazer típicos do posto de trabalho. Ao contrário, passa a ter reconhecida a sua dimensão social e ser concebida como resultante da articulação de diferentes elementos, através da mediação das relações que ocorrem no trabalho coletivo, resultando de vários determinantes subjetivos e objetivos, como a natureza das relações sociais vividas e suas articulações, escolaridade, acesso a informações, domínio do método científico, riqueza, duração e profundidade das experiências vivenciadas, tanto laborais quanto sociais, acesso a espaços, saberes, manifestações científicas e culturais, e assim por diante.
Compreendida desta forma, a qualificação depende das possibilidades de acesso a informações, de interagir com meios e processos de trabalho mais avançados, de exercer sua autonomia e criatividade, de participar da definição das normas e das decisões que afetam suas atividades.2
Contudo, embora seja resultante das condições objetivas de vida e de trabalho, e portanto resultante da práxis coletiva, a qualificação tem uma forte determinação das condições subjetivas, que incluem desejos, motivações, experiências e conhecimentos anteriores, o que faz com que muitos autores considerem inevitável investir na valorização da subjetividade dos trabalhadores nos processos de inovação.3
Em resumo, pode-se afirmar que a qualificação profissional resulta de articulações dinâmicas e contraditórias entre as relações sociais das quais resultam o trabalho coletivo e as possibilidades e limitações do trabalho individual, mediado pelas relações de classe, do que resultam articulações entre conhecimentos e experiências que envolvem as dimensões psicofísica, cognitiva e comportamental, as quais permitirão ao cidadão/produtor trabalhar intelectualmente e pensar praticamente, dominando o método científico, de modo a ser capaz de resolver problemas da prática social e produtiva.
Para desenvolvê-la é preciso outro tipo de pedagogia, determinada pelas transformações ocorridas no mundo do trabalho nesta etapa de desenvolvimento das forças produtivas, de modo a atender às demandas da revolução na base técnica de produção, com seus profundos impactos sobre a vida social. O objetivo a ser atingido é a capacidade para lidar com a incerteza, substituindo a rigidez pela flexibilidade e rapidez, de modo a atender a demandas dinâmicas, sociais e individuais, políticas, culturais e produtivas que se diversificam em qualidade e quantidade.
A partir desta concepção, resta bem diferenciada a finalidade da qualificação no taylorismo/fordismo da apresentada pelos processos produtivos reestruturados considerando a dupla mediação realizada pelas novas tecnologias de base microeletrônica e pelas novas estratégias de gestão: da capacidade bem definida para atuar de forma estável em processos tecnológicos pouco complexos no posto de trabalho para a qualificação entendida como capacidade potencial para atuar em situações não previstas, em processos dinâmicos com base tecnologicamente sempre mais complexa e a partir do conhecimento da totalidade do processo de trabalho, incluindo sua relação com os processos sociais e econômicos mais amplos.
É esta nova dimensão que tem justificado a contraposição do conceito de qualificação, que vem sendo desenvolvido no campo da esquerda, ao conceito de competência, desenvolvido pelo capitalismo nesta nova etapa de acumulação, como forma de demarcar a superação (por incorporação em patamares qualitativamente superiores) de uma concepção que nasce no âmbito de taylorismo/fordismo.
Como já se afirmou anteriormente, estas concepções se aproximam quando defendem um projeto pedagógico que, ao articular conhecimento geral e específico, teoria e prática, sujeito e objeto, parte e totalidade, dimensão disciplinar e transdisciplinar, permita ao aprendiz resolver problemas não previstos usando, de forma articulada, conhecimentos científicos, saberes tácitos, experiências e informações.
O que diferencia, estruturalmente, estas duas concepções, é o campo onde se situam, o que determinará a sua finalidade: a exploração dos trabalhadores para acumular o capital ou a emancipação humana através de uma nova forma de organização da produção, e portanto, da sociedade.
A pedagogia das competências: os limites derivados do capitalismo
No que tange às novas demandas de disciplinamento dos trabalhadores para a acumulação flexível, a pedagogia das competências constitui-se em adequada resposta, expressando a nova pedagogia do capitalismo. Sobre este tema já se encontra abundante produção recente e também severas críticas.4
Para as finalidades deste texto, há que se considerar as novas formas de organização que buscam superar os limites da fragmentação taylorista/fordista através de processos de recomposição da unidade dos processos de trabalho, e em consequência, dos processos de formação.
Trazendo a discussão dos princípios de organização e gestão do trabalho segundo os novos paradigmas (toyotismo)5 para a pedagogia, algumas tendências já podem ser identificadas nos discursos e nas práticas, como o combate de toda forma de desperdício através das ferramentas de qualidade total ou a concepção do administrador escolar como “gestor de negócios”, através de uma reedição da dimensão empresarial da gestão escolar.
Já as tentativas de recomposição da unidade no trabalho pedagógico decorre principalmente do princípio da flexibilidade como condição para a produção segundo a demanda, o que gera a necessidade não mais de produzir estoques de mão-de-obra com determinadas competências para responder às demandas de postos de trabalho cujas tarefas são bem definidas, mas para formar trabalhadores e pessoas com comportamentos flexíveis, de modo a adaptarem-se com rapidez e eficiência a situações novas, bem como criarem respostas para situações imprevistas. Do mesmo modo, a superação da linha de montagem fordista, com seus bem definidos postos e sua relação homem máquina, pelas células de produção onde alguns trabalhadores apenas devem deixar as máquinas trabalhar, fixando-se na preparação do necessário para o seu funcionamento, reforça a ideia da flexibilidade.
Este princípio, em primeiro lugar, potencialmente viabiliza a reunificação do trabalho fragmentado e organizado pelo taylorismo/fordismo, o que é possível pela mediação da tecnologia, em particular de base microeletrônica, e sugere a reunificação do trabalho dos pedagogos, uma vez que as tarefas pedagógicas referentes ao trabalho pedagógico escolar – a articulação entre escola e comunidade na construção da proposta e na implementação do projeto político-pedagógico- têm comprovado, na prática seu caráter de totalidade.
Contudo, uma análise mais aprofundada se faz necessária, para verificar se esta unidade proposta aos processos de trabalho reestruturados se constitui de fato em tomada do trabalho enquanto totalidade, politecnia, ou apenas em ampliação da tarefa, e portanto, polivalência, no melhor estilo fayolista. (Fayol, 1975). Para elucidar esta questão, reproduz-se aqui análise levada a efeito em trabalho anterior.
“Por polivalência entende-se a ampliação da capacidade do trabalhador para aplicar novas tecnologias, sem que haja mudança qualitativa desta capacidade. Ou seja, para enfrentar o caráter dinâmico do desenvolvimento científico-tecnológico o trabalhador passa a desempenhar diferentes tarefas usando distintos conhecimentos, sem que isto signifique superar o caráter de parcialidade e fragmentação destas práticas ou compreender a totalidade. A este comportamento no trabalho corresponde a interdisciplinaridade na construção do conhecimento, que nada mais é do que a interrelação entre conteúdos fragmentados, sem superar os limites da divisão e da organização segundo os princípios da lógica formal. Ou seja, a uma “juntada” de partes sem que signifique uma nova totalidade, ou mesmo o conhecimento da totalidade com sua rica teia de interrelações; ou ainda, uma racionalização formalista com fins instrumentais e pragmáticos calcada no princípio positivista da soma das partes. É suficiente usar os conhecimentos empíricos disponíveis sem apropriar-se da ciência, que permanece como algo exterior e estranho.
A politecnia significa o domínio intelectual da técnica e a possibilidade de exercer trabalhos flexíveis, recompondo as tarefas de forma criativa; supõe a superação de um conhecimento meramente empírico e de formação apenas técnica, através de formas de pensamento mais abstratas, de crítica, de criação, exigindo autonomia intelectual e ética. Ou seja, é mais que a soma de partes fragmentadas; supõe uma rearticulação do conhecido, ultrapassando a aparência dos fenômenos para compreender as relações mais íntimas, a organização peculiar das partes, descortinando novas percepções que passam a configurar uma compreensão nova e superior, da totalidade, que não estava dada no ponto de partida.
A politecnia cria a possibilidade de construção do novo, permitindo aproximações sucessivas da verdade, que nunca se dá a conhecer plenamente; por isto, o conhecimento resulta do processo de construção da totalidade, que nunca se encerra, pois há sempre algo novo para conhecer. Nesta concepção, evidencia-se que conhecer a totalidade não é dominar todos os fatos, mas as relações entre eles, sempre reconstruídas no movimento da história.” (Kuenzer, 2000, p. 86-87).
Do ponto de vista do currículo, da politecnia deriva o princípio pedagógico que mostra a ineficácia de ações meramente conteudistas, centradas na quantidade de informações que não necessariamente se articulam, para propor ações que, permitindo a relação do aluno com o conhecimento, levem à compreensão das estruturas internas e formas de organização, conduzindo ao “domínio intelectual” da técnica, expressão que articula conhecimento e intervenção prática. A politecnia supõe, portanto, uma nova forma de integração de vários conhecimentos, através do estabelecimento de ricas e variadas relações que quebram os bloqueios artificiais que transformam as disciplinas em compartimentos específicos, expressão da fragmentação da ciência.
Do ponto de vista da organização do trabalho pedagógico, a politecnia implica em tomar a escola como totalidade, em compreender a gestão como prática social de intervenção na realidade tendo em vista a sua transformação, e em uma nova qualidade na formação dos profissionais da educação, pedagogos e professores, a partir de uma sólida base comum que tome as relações entre sociedade e educação, as formas de organização e gestão do trabalho pedagógico, as políticas, os fundamentos e as práticas educativas, que os conduza ao “domínio intelectual da técnica”.
A partir desta concepção, algumas conclusões se impõem; a análise do exercício laboral e da formação dos chamados trabalhadores flexíveis mostra que, embora presente no discurso a recomposição da unidade, nunca estiveram tão distantes da prática o poder de decidir, de criar ciência e tecnologia, de intervir em processos cada vez mais centralizados, tecnológica e gerencialmente. Pelo contrário, o trabalho da maioria está cada vez mais desqualificado, intensificado e precarizado, como resultado do novo regime de acumulação. Do que se conclui que, do ponto de vista da gestão empresarial, a recomposição da unidade do trabalho não passa de ampliação de tarefas do trabalhador, sem que isto signifique uma nova qualidade na formação, de modo a possibilitar o domínio intelectual da técnica. O mesmo tem ocorrido com o trabalho dos profissionais da educação: suas tarefas estão sendo a cada dia ampliadas, num esforço de suprir na escola direitos que a sociedade não assegura, inclusive desempenhando funções que historicamente foram de responsabilidade das famílias; seu trabalho está sendo cada vez mais intensificado, com a progressiva extensão de jornadas de trabalho e trabalho domiciliar; suas condições de trabalho cada vez mais precarizadas, não só da perspectiva da escola e do salário, mas com sérias consequências sobre sua qualidade de vida e condições de existência: stress e outros problemas de saúde física e mental, alimentação, lazer, formação profissional continuada, acesso aos bens materiais e culturais, e assim por diante.
A divisão entre os que possuem os meios de produção e os que vendem sua força de trabalho cada vez mais se acentua na acumulação flexível, acirrando-se, ao contrário do que diz o novo discurso do capital, a cisão entre o trabalho intelectual, que compete cada vez a um número menor de trabalhadores, estes sim, com formação flexível resultante de prolongada e contínua formação de qualidade, e o trabalho instrumental cada vez mais esvaziado de conteúdo.
Em decorrência, a politecnia enquanto unidade entre teoria e prática, resultante da superação da divisão entre capital e trabalho, fica historicamente inviabilizada a partir das bases materiais de produção no capitalismo, em particular neste regime de acumulação. A unitariedade, portanto, só será possível através da superação entre capital e trabalho – verdadeira e única origem da divisão entre classes e das demais formas de divisão; inscreve-se, portanto, no campo da utopia, como condição a ser construída através da superação do capitalismo.
Ora, se o trabalho pedagógico, escolar e não escolar, ocorre nas e através das relações sociais e produtivas, ele não está imune às mesmas determinações. Ou seja, enquanto não for historicamente superada a divisão entre capital e trabalho, o que produz relações sociais e produtivas que têm a finalidade precípua de valorização do capital, não há possibilidade de existência de práticas pedagógicas autônomas; apenas contraditórias, cuja direção depende das opções políticas da escola e dos profissionais da educação no processo de materialização do projeto político-pedagógico. Este, por sua vez, expressa os consensos e práticas possíveis em um espaço escolar ou não escolar atravessado por relações de poder, concepções teóricas, ideológicas e políticas também contraditórias, para não falar dos diferentes percursos de formação profissional. Esta análise mostra que nos espaços educativos capitalistas, a unitariedade do trabalho pedagógico enquanto trabalho que não se diferencia a partir da origem de classe dos seus alunos e de seus profissionais, também não é historicamente possível. Mas, isto significa que não se possa avançar?
É evidente que não; é preciso, contudo, considerar que a superação destes limites só é possível através da categoria contradição, que permite compreender que o capitalismo traz inscrito em si, ao mesmo tempo, a semente de seu desenvolvimento e de sua destruição. Ou seja, é atravessado por positividades e negatividades, avanços e retrocessos, que ao mesmo tempo evitam e aceleram a sua superação. É a partir desta compreensão que se deve analisar a unitariedade como possibilidade histórica de superação da fragmentação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS.
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ZARIFIAN, P. Objetivo: competências.
Autoria: Francisco H. Lopes da Silva
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