A introdução da matéria da Bretanha em Portugal deu-se já na última fase das sucessivas versões do ciclo, quando os feitos heroicos de cavalaria e os enredos de amor foram adaptados a uma intenção religiosa.
Por isso. A Demanda representa, relativamente à moral cortês que inspira as cantigas de amor, uma completa inversão de valores. Enquanto na lírica cortês, como em todo romance cortês anterior a essa fase, o amor é exaltado como o caminho para a felicidade e para a perfeição moral, em A Demanda do Santo Graal todo amor é considerado pecaminoso e a virgindade é recomendada como o estado mais perfeito. Lancelote do Lago, o antigo herói, modelo de cavaleiro e amante, vê-se eclipsado por seu filho, que é também sua réplica, Galaaz, que jamais conheceu mulher.
A versão mais conhecida em Portugal narra inicialmente a proveniência do Santo Graal, cálice ou vaso que continha o sangue de Cristo, recolhido por José de Arimatéia e por ele transportado, passando por múltiplas vicissi-tudes, desde Jerusalém até o castelo de Corberic, na Inglaterra, onde ficou guardado pelo “Rei Pescador“, misteriosamente doente. O mago Merlim profetiza que novos tempos seriam inaugurados com a chegada de um cavaleiro predestinado, capaz de romper o encantamento do Santo Graal.
No dia de Pentecostes (dia do Espírito Santo), 150 cavaleiros reunidos em Camaalot, na corte do Rei Artur, em torno da távola redonda, esperavam ansiosamente a chegada do cavaleiro misterioso que iria ocupar a cadeira perigosa. Surge então Galaaz, filho de Lancelote. O Rei Artur conduz todos até a praia, onde Galaaz dá prova de sua destinação como cavaleiro eleito: consegue retirar a espada encravada numa pedra flutuante, façanha que nenhum cavaleiro conseguira realizar. À noite, reunidos em torno da távola redonda para a ceia, os cavaleiros são surpreendidos pela aparição do misterioso vaso, o Santo Graal, que a todos ilumina com a Graça do Espírito Santo e os nutre com a luz de um místico alimento. Sobressaltados e extasiados com a experiência mística, os cavaleiros do Rei Artur juram não descansar enquanto não encontrassem o cálice sagrado que os iluminaria com a graça celestial.
Começa então a demanda do Santo Graal, composta de inúmeras aventuras heroicas e sentimentais, que servem para pôr à prova a virtude e a coragem dos cavaleiros do Rei Artur. Somente Perceval, Boors e Galaaz resistem e, destes, coube a Galaaz o prêmio de, como o cavaleiro escolhido, gozar a graça da vida “espiritual” antes de se despojar da carcaça terrena. (O nome do “escolhido“, único a gozar a comunhão sobrenatural, deriva de Galaad, palavra de ascendência bíblica, que significa “o puro dos puros”, o próprio Messias, símbolo de um novo Cristo, ou um Cristo sempre vivo, em peregrinação mística pelo mundo.)
Após a “consagração” de Galaaz, a novela continua com a narrativa do caso amoroso adulterino de Lancelote, pai de Galaaz, e da rainha Ginebra, esposa do Rei Artur. Segue-se o colapso do reino de Logres e a morte de Artur, no meio de sangue, traições e lágrimas.
A cristianização da lenda pagã do Santo Graal transformou A Demanda em uma novela mística, um retrato vivo da Idade Média teocêntrica, em busca de um ideal utópico de vida, voltado para a salvação sobrenatural, o que não impede a existência do lirismo, do erotismo e do fantástico em cenas em que o real e o imaginário se cruzam de modo surpreendente. É o que ocorre nos capítulos 106-116, quando a filha do Rei Brutus, enfebrecida de paixão, penetra nos aposentos de Galaaz e se oferece ao “cavaleiro escolhido”, submetendo a uma dura prova sua inquebrantável castidade.
Por: Renan Bardine