Contemporânea da poesia lírica trovadoresca, a novela Amadis de Gaula é uma obra peninsular, ainda que não se saiba com certeza se o original é português ou espanhol. Reflete, melhor que A Demanda do Santo Graal, a galanteria palaciana das cantigas de amor e o ideal do cavaleiro andante, guerreiro e sentimental, sempre às voltas com encontros e desencontros amorosos.
Amadis é um cavaleiro mais humano e mais denso psicologicamente que os heróis padronizados pela tradição. Representa a transição do homem medieval para o homem concebido segundo os valores renascentistas e anuncia o herói moderno, fundindo o “serviço” amoroso dos antigos trovadores, a dedicação constante e obsessiva à bem-amada, com “um grande e mortal desejo”, uma nota de sensualismo ardente que ousa transgredir as leis e convenções sociais e morais.
Foi uma das novelas mais populares da Europa até o século XVI e deu origem a todo um ciclo constituído por doze novelas, o Ciclo Amadises, que constituiu o último foco irradiador das sagas cavaleirescas para toda a Europa ocidental, numa épo ca em que a mentalidade e a estrutura social já faziam anacrônicas essas narrativas aventurescas e idealistas, contrastadas com a ideologia burguesa do lucro, que impunha uma visão mais realista e pragmática do mundo.
Aliás, a novela Amadis de Gaula, juntamente com Palmeirim da Inglaterra, foram as únicas poupadas da crítica sarcástica de Cervantes, em D. Quixote. No famoso episódio em que o barbeiro e o padre resolvem queimar a biblioteca do fidalgo para evitar que ele enlouquecesse ainda mais por causa da leitura perniciosa das novelas de cavalaria, só essas duas foram preservadas do incêndio.
A autoria de Amadis de Gaula é um problema intricado. Não se sabe ao certo quem a escreveu, nem em que língua. A primeira edição da novela, de 1508, é espanhola, escrita por Montalvo. Contudo, há indicações muito anteriores, em Portugal, de que teria sido escrita originalmente em português, por João de Lobeira ou Vasco de Lobeira, datando a primeira versão, cujo texto não se conhece senão por referências, da época de D. João III e de D. Dinis.
O argumento da novela pode ser assim resumido:
Amadis é o fruto da relação clandestina do Rei Perion de Gaula com Elisena, filha do rei da Pequena Bretanha. Abandonado nas águas do mar, é recolhido pela família da infanta Oriana, de quem irá se tornar pajem. À medida que Amadis cresce, começa a nutrir pela infanta uma verdadeira adoração, e sua vida desdobra-se num longo “serviço” inteiramente consagrado à amada Oriana. Apesar da força da paixão, a timidez o impedia de se declarar. Mais tarde, quando ousa confessar seu sentimento, ambos se comprometem a guardar segredo sobre o amor que os unia. Ninguém sabia que era por Oriana que Amadis se arriscava a combates nunca vistos contra monstros, gigantes e dragões. Certa feita, o cavaleiro invencível quase deixa cair a espada das mãos ao ver, da arena de combate, a sua “senhora” na assistência. Em outra ocasião, injustamente acusado de infidelidade pela amada, Amadis decide abandonar o mundo e fazer-se ermitão. Mas novas aventuras envolvem o herói até que, numa delas, ao salvar Oriana, acaba ficando com ela a sós na floresta. Entregam-se um ao outro, selando com a posse dos corpos o compromisso do amor, narrado assim:
“naquela erva e em cima daquele manto, mais por graça e comedimento de Oriana que por desenvoltura e ousadia de Amadis, foi feita dona a mais formosa donzela do mundo “.
Após alguns incidentes, tudo se esclarece e eles se casam, sacramentando a união carnal já consumada.
Espécie de manual romanceado das virtudes do cavaleiro, do amante e do cortesão, Amadis mescla a bravura que chega aos limites da violência sanguinária, da quase selvageria nos combates, com o sentimentalismo do cavaleiro tímido perante sua “senhora”, e que vive a suspirar por ela e perturba-se ante sua simples presença. Amadis é o protótipo do cavaleiro idealizado por uma aristocracia cada vez mais palaciana e requintada. Nele funde-se o caráter maravilhoso das novelas bretãs com o espírito belicoso da gesta francesa. Embora o casamento de Amadis e Oriana seja posterior à união carnal, a novela consagra a ordem estabelecida, submetendo o amor às convenções do matrimônio. A virtude é premiada com o happy end com que se encerra a obra.
Por: Renan Bardine