Fogo morto (1943) é considerado a obra-prima de Lins do Rego e o último romance da fase regional neorrealista, que no Brasil teve início nos anos 1930. A obra apresenta três partes, cada uma focada em um dos três protagonistas.
1ª parte: O mestre José Amaro
Apesar de não pertencer ao “ciclo da cana-de–açúcar” de José Lins do Rego, encerrado com Usina, Fogo morto retoma a temática canavieira, alguns personagens já conhecidos e o engenho Santa Rosa.
Na primeira parte, apresenta-se Mestre Amaro, um seleiro (artesão que faz selas para cavalos), e explica-se a fama de lobisomem atribuída a ele, em razão de sua personalidade amarga e frustrada e de suas andanças à noite.
Além de estar sendo pressionado pelo dono do engenho Santa Fé a deixar suas terras, Amaro vivia amargurado com a sua situação familiar, pois não se entendia muito bem com a filha e a esposa. Gostava de andar à noite porque o silêncio e a solidão lhe traziam um pouco de paz e alívio. Mas o povo começava a inventar que o seleiro era uma estranha criatura noturna que saía em busca de sangue.
Viu a luz da casa das velhas do seu Lucindo como um farol vermelho na luz branca da lua. Aproximou-se mais e ouviu choro de gente. O que seria aquilo? Pensou em entrar no atalho que dava para a casa. E estava pensando em procurar saber o que podia ser aquele choro, quando um canto de reza subiu ao ar. Era quarto de defunto. Entrou no atalho e se foi chegando para a casa que se escondia atrás de um juazeiro enorme. Só podia haver muita gente dentro da casa para dar aquele volume enorme de canto de morte. E quando ele se chegou na janela e botou a cabeça para olhar o povo rezando, um grito estourou como uma bomba.
– É ele, é o lobisomem. Correu gente, mulheres gritaram.
– É o mestre José Amaro, gente – falava um homem que estava na porta.
– É o mestre José Amaro, povo besta.Pararam de rezar. Estendida na esteira estava a velha Lucinda amortalhada. Olhavam para ele as mulheres apavoradas. Não pôde ficar por mais tempo ali. O homem que acompanhara as mulheres veio falar com o mestre.
– Estão com medo do senhor.
– De mim?
– É verdade. Este povo é besta mesmo. (…)Agora não estava consertando os arreios de um velho doido, não estava fazendo sela para um camumbembe qualquer. Trabalhava para o grupo de Antônio Silvino. Cortava solas para cabras que já sabiam morrer no rifle, para gente que tinha sangue de macho. Não era um pobre seleiro de beira de estrada, era mais um oficial de bagaceira de engenho. (…)
Que fossem para o inferno os grandes da terra. Para ele só havia uma grandeza no mundo, era a grandeza do homem que não temia o governo, do homem que enfrentava quatro estados, que dava dor de cabeça nos chefes de polícia, que matava soldados, que furava cercos, que tinha poder para adivinhar os perigos.
José Amaro tinha grande afinidade com o estilo desregrado de vida de Antônio Silvino, líder do cangaço, considerando-o como um herói, símbolo da força e da coragem – qualidades que José Amaro não possuía.
2ª parte: O engenho de seu Lula
A segunda parte faz uma regressão temporal e apresenta ao leitor a figura do capitão Tomás Cabral de Melo, o fundador do engenho Santa Fé. Após sua morte, é o marido da filha (dona Amélia), seu Lula, quem passa a conduzir o engenho.
A carruagem atravessava as várzeas do Santa Fé. Tudo estava coberto de mato. Só um partido de cana, umas três cinquentas, com o verde-escuro da cana bem criada. No mais era a mataria, o tabocal, o mata-pasto, o melão-de–são-caetano se enrascando pelas estacas da beira da estrada. Também não havia ninguém que quisesse plantar as terras do Santa Fé. O coronel Lula não queria lavrador que lhe viesse com exigências descabidas. Ali viera, logo depois de 88, um sujeito de Itambé, e fizera dum partido de cana para mais de duzentos pães. Seu Lula implicara com o lavrador, e no final da safra o homem deixara tudo e ganhara o mundo. A fama da mesquinhez de seu Lula correra pelos quatro cantos. E por isso não aparecia quem lhe quisesse plantar a várzea.
A falta de habilidade de seu Lula para conduzir o engenho é uma das causas da decadência do Santa Fé. Ele tinha a fama de tratar com extrema violência os escravos, que acabam por debandar após a abolição.
Sem se entender com lavradores, seu Lula vai afundando cada vez mais o engenho. Após um ataque epilético torna-se um religioso fervoroso. Esta parte da narrativa termina com uma triste constatação: “Acabara-se o Santa Fé”.
3ª parte: O capitão Vitorino
O capitão Vitorino, compadre e amigo de Mestre Amaro, é o personagem central da terceira parte. Luta por seus ideais, sendo sonhador em demasia. Deseja ser um herói, mas para a maior parte da população do Pilar é tido como um louco ou um bobo. A figura do “Papa Rabo”, como era conhecido constitui uma mescla de dom Quixote e Sancho Pança, de Cervantes. Após um incidente com o tenente, o capitão tem o reconhecimento que considera ser digno dele.
E quando o trem saiu com o velho Vitorino, a estação estava cheia de gente que viera ver a partida do prisioneiro. Todos se espantavam da coragem, do jeitão atrevido do velho. Era homem que ninguém dava nada por ele e não tinha medo de coisa nenhuma. A velha Adriana voltou para casa mais tranquila. Vira o marido com os parentes ao seu lado. Mas o tenente Maurício ficara na vila como um rei. Delegado e prefeito não valiam nada para ele. (…)
Saíra um artigo no Norte com queixa contra o tenente. O capitão Vitorino Carneiro da Cunha era apontado como um cidadão pacato que levara uma surra da força volante. No outro dia apareceu uma retificação. Era Vitorino que procurara o redator para contar tudo como se passara. Não levara surra nenhuma. Em luta com o tenente, que procurava humilhá-lo, fora ferido. Reagira à prisão. Toda esta perseguição só podia atribuir às suas atitudes políticas. Estava contra o governo. Era correligionário da candidatura de Rego Barros. Pois ficasse o governo certo de que não havia força humana que o arredasse do seu caminho. Ele e todo o eleitorado iriam às urnas para salvar a Paraíba dos oligarcas. A resposta de Vitorino foi lida no Pilar, como mais uma do velho. Mas pelo estado correu a notícia da violência. Os jornais de Recife falaram no caso. Um homem de bem, um proprietário na Paraíba fora agredido pela força pública porque se mantinha contra a situação. Era tudo o que Vitorino queria na vida. Voltaria assim da capital como um chefe. Agora falava por cima dos ombros. O coronel Rego Barros passara-lhe um telegrama do Rio com palavras de aplausos à sua atitude corajosa. Seria recompensado com a vitória da causa. Pelos seus cálculos o município era todo seu.
Quando o mestre José Amaro suicida-se com uma faca de solar, é o capitão Vitorino quem cuida do defunto. Também é ele quem vê, ao final da obra, o engenho Santa Rosa soltando fumaça e a chaminé do Santa Fé com flores cobrindo a boca suja, O engenho estava de “fogo morto”, ou seja, não produzia mais.
Decadência e esperança
Fogo Morto representa a decadência de uma organização econômica e social: o engenho. Através dos três personagens principais, focalizados em cada uma das partes do romance, José Lins do Rego nos apresenta diferentes reações às mudanças, que levam a diferentes destinos.
Mestre Amaro e o coronel Lula de Holanda resistem às mudanças e por isso não se encaixam nesse mundo em transformação. O primeiro, um artesão, representa o trabalho manual que deixará de existir na sociedade industrial que começa a chegar com as usinas. O segundo representa uma aristocracia rural inconformada pela perda de seu poder econômico e político, antes absolutos. Apenas o capitão Vitorino parece reagir às mudanças de forma positiva luta para modificar velhas estruturas porque quer construir uma sociedade melhor, mais justa. Apesar de sua ingenuidade, insere no desfecho do romance um toque de esperança.