A trilogia épica O tempo e o vento apresenta a saga das famílias Terra-Cambará na formação do Rio Grande do Sul. A obra, de grande extensão, foi dividida em três partes, publicadas respectivamente em 1949, 1951 e 1962.
A trilogia
A trilogia O tempo e o vento compreende dois séculos da história rio-grandense, condensando os primeiros 150 anos em O continente, que se inicia em 1745 com as missões jesuíticas, e se estende até 1895 com o fim do cerco ao sobrado dos Cambará. Os cinquenta anos restantes são apresentados em O retrato e O arquipélago, cujos capítulos finais retratam a queda de Getúlio Vargas, em 1945.
O continente
Na primeira parte da trilogia, retrata-se a conquista e a ocupação do território durante os séculos XVIII e XIX. A conquista se dá por meio de aventureiros sorocabanos e lagunenses que se dirigem ao oeste e ao sul da região em busca de planícies férteis para o pastoreio. Essa conquista também ocorre graças à imigração açoriana e ao estabelecimento de fortificações militares pelo Estado português.
A partir da conquista e da consolidação do poder dos estancieiros na região, associadas à solidificação do núcleo familiar, surgem os primeiros clãs dominantes.
Os dois volumes de O continente são os mais lidos e divulgados da trilogia. Com eles surgem também os personagens mais conhecidos do grande público: Ana Terra e o Capitão Rodrigo, que lutou nas tropas de Bento Gonçalves (caracterizando a mistura de ficção e história, notável em todo o livro).
Ana Terra
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Pois Ana estava agora decidida a contrariar o destino. Ficara louca de pesar no dia em que deixara Sorocaba para vir morar no Continente. Vezes sem conta tinha chorado de tristeza e de saudade naqueles cafundós. Vivia com medo no coração, sem nenhuma esperança de dias melhores, sem a menor alegria, trabalhando como uma negra, e passando frio e desconforto… Tudo isso por quê? Porque era a sua sina. Mas uma pessoa pode lutar contra a sorte que tem. Pode e deve. E agora ela tinha enterrado o pai e o irmão e ali estava, sem casa, sem amigos, sem ilusões, sem nada, mas teimando em viver. Sim, era pura teimosia. Chamava-se Ana Terra. Tinha herdado do pai o gênio de mula.
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Um certo Capitão Rodrigo
Toda gente tinha achado estranha a maneira como o cap. Rodrigo Cambará entrara na vida de Santa Fé. Um dia chegou o cavalo, vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu de barbicacho puxado para a nuca, a bela cabeça de macho altivamente erguida, e aquele seu olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia andar lá pelo meio da casa dos trinta, montava um alazão, vestia calças de riscado, botas com chilenas de prata e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal. Tinha um violão a tiracolo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encarnado que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira. Apeou na frente da venda do Nicolau, amarrou o alazão no tronco dum cinamomo, entrou arrastando as esporas, batendo na coxa direita com o rebenque, e foi logo gritando, assim com ar de velho conhecido:
– Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!
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O retrato
A segunda parte da obra é ambientada no período compreendido entre as duas primeiras décadas do século XX, em Santa Fé, que aos poucos foi deixando para trás as marcas rurais para assumir sua urbanização.
O título faz referência ao personagem Rodrigo Cambará (homônimo e bisneto do capitão), cuja transformação é vertiginosa: de homem culto, médico formado e de requintados costumes, surge o gaúcho machão, com acessos de violência e de um incontido desejo sexual. Testemunha do que ele foi, até chegar a Santa Fé, só mesmo o retrato pendurado em uma das paredes do Sobrado, feito logo que ela chega à cidade.
Rodrigo aproximou-se da janela e por alguns instantes ficou a olhar a praça, através dos vidros meio embaciados.
O desaparecimento do Senador dava-lhe uma estranha sensação de orfandade que ele não procurava explicar nem combater.
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E naquela mesma noite, ao entrar no Comercial, onde esperava colher assinaturas para o telegrama, ouviu um forasteiro comentar em altos brados: “Bem-feito! foi uma limpeza! Era um caudilho, um déspota, a asa negra do Brasil!” Precipitou-se sobre ele, segurou-o pela gola do casaco, deitou-o sobre um dos bilhares e esbofeteou-lhe repetidamente a cara, vociferando:
– É para aprenderes a respeitar os homens, canalha!
O arquipélago
A terceira e última parte da obra, O arquipélago, simboliza a desintegração dos clãs e das pessoas.
A decadência dos estancieiros cede lugar aos imigrantes.
Diferentemente da segunda parte da trilogia, aqui os personagens atuam ativamente na vida pública e política do Rio de Janeiro.
Confira a transcrição de trechos do último discurso do doutor Rodrigo Cambará como deputado federal republicano.
– Fosse qual fosse a cor do lenço, éramos todos democratas! E nessa confortadora certeza viveram os homens da minha geração que se haviam alimentado no leite generoso das ideias de Igualdade, Liberdade e Humanidade! Em nome desses ideais maravilhosos, milhares de gaúchos valorosos, através dos tempos, sacrificaram seu bem-estar e o de suas famílias, perderam seus bens e até suas vidas, lutando, matando e morrendo em guerras muitas vezes fratricidas!
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– Mas qual foi – continuou Rodrigo – o resultado de tantos sacrifícios e renúncias, de tanto sangue generoso derramado, de tantas belas promessas e palavras?
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– O resultado, senhores, foi esse espetáculo degradante que estamos hoje presenciando de um homem que se apega ao poder e quer fazer-se reeleger, custe o que custar, doa a quem doer!
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– É por tudo isso, senhor presidente e meus colegas, que venho hoje aqui renunciar publicamente ao meu mandato de deputado pelo Partido Republicano Rio-Grandense e dizer, alto e bom som, que vou sair por aquela porta, de viseira erguida, exonerado de qualquer compromisso para com essa agremiação política, sair como um homem livre, senhor de seu corpo e de seu destino. E quero também declarar perante a opinião pública de meu estado que vou colocar-me por inteiro, inteligência, fortuna, experiência, entusiasmo, a serviço da causa democrática, neste momento tão gloriosamente encarnada na figura egrégia desse republicano histórico que é o doutor Joaquim Francisco de Assis Brasil! Tenho dito.
Em O arquipélago; assim como nas outras partes da saga, mesclam-se personagens históricos, como Getúlio Vargas, Osvaldo Aranha e Luís Carlos Prestes, com personagens fictícios do romance.
A trilogia é finalizada de maneira metalinguística. Valendo-se do personagem Floríano, Erico Veríssimo tem em mãos a narrativa da formação da história das famílias rio-grandenses, com suas lutas e suas conquistas.
Sentou-se à máquina, ficou por alguns segundos a olhar para o papel, como que hipnotizado, e depois escreveu dum jato:
Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado.
E é exatamente com essas mesmas frases que o romance O tempo e o vento se inicia, fechando o ciclo desta importante obra regionalista da literatura brasileira.