O xintoísmo, religião nacional do Japão, é um amálgama de crenças e ritos ancestrais centrados na adoração de forças sobrenaturais denominadas Kami. Sobrevive desde tempos remotos até a atualidade, mas com o decorrer dos séculos sofreu inumeráveis adaptações e transformações.
Caracterização do xintoísmo
O nome da religião nacional do Japão, xintoísmo, foi criado no século VI, a partir de dois conceitos chineses, Shen e to. Shen (Shin em japonês) significa “espírito” ou “deus”. To (do em japonês) significa “via” ou “caminho”. Essa denominação servia para diferenciá-lo do budismo (Butsudo ou via de Buda).
Os espíritos ou deuses cuja adoração é a base do xintoísmo são as forças sobrenaturais chamadas Kami, múltiplas e variadas e que, ao longo dos séculos, aumentaram em número e experimentaram numerosas mutações.
As características mais notáveis do xintoísmo são as seguintes:
a) a capacidade sincrética, isto é, a facilidade para adaptar ou assimilar crenças de outras religiões com que conviveu, em especial do budismo;
b)é uma religião nacional que favoreceu a criação de mitos próprios, uma vez que se viu complementada por outras religiões, como o budismo e o confucionismo. Por sua própria natureza ancestral, é arcaica e conservadora, mas passou por mudanças e adaptações ao longo da história.
Fontes escritas do xintoísmo
O xintoísmo, por se tratar de um amálgama de crenças locais díspares, não possui textos canônicos de origem sacerdotal, já que não existia uma classe sacerdotal organizada e hierarquizada que detivesse o controle ideológico.
No século VII, o imperador Temmu (c. 631-686) ordenou, no entanto, a compilação e a ordenação das genealogias (Teikí) e das narrações (Kyuji).
No ano 712, O No Yasumaro, erudito e estadista morto em 723, escreveu -em um complexo japonês carregado de expressões chinesas – o Kojiki (Narrações das coisas antigas), em que conta a história do Japão até o ano 628, incluindo relatos míticos. No ano 720 é compilado em chinês o Nihonshoki (Crônicas do Japão), em que trabalham o príncipe Toneri (676-735) e o estadista Fujiwara No Fubito (659-720). Resulta também importante para o estudo do xintoísmo o Izumo Fudoki, compilado em 733 e o único dos Fudoki (informes locais encomendados pela corte imperial de Nara) que se conservou por inteiro. Por último, aparecem dados religiosos de interesse nas antologias de poemas do século VIII, o Koifuso de 751 e o Man’yoshu de 759, e no Engishiki (Regras da era de Engi), compilado em 927.
A teologia xintoísta: os Kami
Os Kami são seres sobrenaturais com poder e capacidade superiores aos do homem, que residem ou se materializam em objetos e seres. Seu número é muito elevado e são difíceis de se representar iconograficamente.
Eles podem ser condensados em três grandes grupos: os Kami da natureza e suas forças, os Kami dos uji (linhagens) e os Kami de indivíduos e dos antepassados.
Os Kami da natureza são os mais antigos. Entre eles estão as árvores, especialmente os pinheiros. Do mesmo modo, as montanhas, as pedras (em especial as de formas estranhas), os lagos e os rios também eram Kami. Os animais, muito especialmente os maiores, eram vistos como manifestações de Kami ou como Kami eles mesmos (lobos, cervos). Em muitos casos, eram idealizados como seres favoráveis ao homem e invocados para se conseguir uma melhor colheita. O trovão, os astros e o vento eram também Kami venerados, o que fazia da natureza um local povoado de seres sobrenaturais e geralmente benéficos. Tendeu-se também a identificar territorialmente essas divindades surgindo Kami de campos de trabalho ou de vales férteis.
Os Kami das linhagens, ou uji, surgiram dos Kami territoriais, que foram modificando e ampliando seu campo de ação até representar e proteger os grupos ali estabelecidos. O Japão primitivo se organizava em linhagens (uji); o pertencimento ao uji se baseava em laços de parentesco comuns, quer fossem biológicos ou fictícios, na aceitação da chefia do uji e no culto da divindade protetora, o ujigamí. Quando a organização social se tornou mais complexa, certas sublinhagens se viram privilegiadas e aumentaram sua importância. Por outra parte, a linhagem Yamato foi consolidando sua superioridade diante do resto das linhagens do Japão.
Reconhecidos seus chefes como reis pelos chineses após aceitarem pagar tributos, a linhagem Yamato aumentou seu poder a partir do século III, controlando territórios extensos e começando a consolidar uma ideologia que sustentasse sua preeminência. Os soberanos Yamato diziam originar-se em Yimmu Tenno, o primeiro imperador do Japão, aparentado dos deuses, cuja vida é datada nos relatos lendários nos anos 660 a.e.c. A partir da metade do século VI, os cultos começaram a ser centralizados, em especial as festas de primavera, e os rituais foram sendo regulamentados. O reino Yamato pretendeu controlar e canalizar a religião dos uji, vassalos por meio de uma administração política unida estreitamente ao religioso.
Os indivíduos excepcionais por seu poder ou suas capacidades são tidos em vida por Kami, como o imperador. Após a morte, também se convertem em Kami algumas personagens especialmente notórias, ainda que não pareça ter existido um culto dos antepassados tal como se deu na China. Além disso, como consequência de que o mundo da morte e o culto funerário fossem facetas religiosas nas quais o budismo se especializou a partir de sua implantação, o conhecimento dos ritos fúnebres ancestrais ficou comprometido.
Também a fecundidade era presidida por Kami, que se materializava em pedras e objetos que apresentavam formas alusivas aos órgãos sexuais masculinos.
Evolução do xintoísmo
Desde os cultos à natureza do xintoísmo mais arcaico até o xintofsmo moderno, que agrupa centenas de doutrinas unidas por forte sincretismo e com grande diversidade, essa religião japonesa variou muito com o passar dos séculos.
O xintoísmo antigo
O xintoísmo antigo, que nem sequer levava o nome de shinto, engloba as religiões do Japão na época anterior ao impacto do budismo e dos métodos estrangeiros de governo.
Os cultos xintoístas mais antigos eram naturalistas, sem santuários, centrados em cerimônias que se adaptavam ao calendário agrícola. Existiam especialistas no sagrado, mas não formavam uma verdadeira casta sacerdotal; pelo contrário, eram mais xamãs capazes de atrair os Kami e submetê-los, e adivinhos que utilizavam ossos e cascas de tartaruga e omoplatas de cervo ou diziam conhecer o futuro pela interpretação de presságios.
As práticas religiosas principais deviam ser os matsurí, oferendas e ritos para implorar aos Kami. Constavam de uma fase em que se buscava atrair o Kami mediante oferendas de arroz ou pescado e especialmente saque (aguardente de arroz considerada uma bebida de índole misteriosa), para implorar-lhe favores ou pedir-lhe que desvelasse o futuro.
Essas cerimônias eram realizadas junto com banquetes comunitários, cujos participantes caíam em transes provocados pela ingestão de saque e eram acompanhadas de procissões (miyuki) e de enfrentamentos rituais: luta com espada, comidas de cavalos ou competições na corda. Acredita-se que tinham a finalidade de unir o grupo e favorecer a tomada de decisões.
Monges xintoístas rezando num templo de Nikko. Japão.
O xintoísmo imperial e xogunal
Desde o século VI até 1868 se desenvolve o xintoísmo imperial e xogunal, que acusa a influência do confucionismo como forma política de justificação do poder imperial e também recebe o influxo do budismo com seu caráter filosófico, sua insistência na iconografia, no além e na morte. O budismo resultou uma reviravolta no xintoísmo e surgiram fortes controvérsias em tomo da figura de Buda, entendido por seus detratores como um Kami estrangeiro e pernicioso. O xintoísmo, diante desse desafio, procurou se adaptar. Por exemplo, os sutra budistas eram utilizados como poderosos conjuros, e os monges atuavam como xamãs, capazes até de ajudar o morto em sua viagem para o além.
Os deuses xintoístas terminam sendo identificados, a partir do século XII, com bodhisatvas, que cantam sutras budistas nos altares shinto. E ainda: como consequência da influência jesuíta nos séculos XVI e XVII, surgiu um xintoísmo sincrético com o cristianismo.
O xintoísmo de Estado
Desde o século XIV até 1 868 houve, no Japão, defensores do xintoísmo tradicional, livre do sincretismo budista, mas, nessa data, cai o regime do xogunato. Com o fim do xogunato, desenvolve-se um xintoísmo tradicional que defende duas ideias fundamentais: a supremacia imperial e a superioridade do povo japonês sobre todas as nações estrangeiras, inclusive a chinesa.
Essa opção ideológica consolidou um ultranacionalismo muito prejudicial para os países vizinhos do Japão, uma vez que, a partir de 1868, o xintoísmo se converteu em religião de Estado,
Depois de flutuar entre a tolerância e a repressão de outras crenças para alinhar-se com as constituições europeias, em 1889 se optou pela liberdade de culto. O Estado, em teoria, não possuía opção religiosa definida nem meios legítimos de repressão contra as religiões estrangeiras, como o budismo ou o cristianismo. Na prática, a consequência foi o surgimento de três xintoísmos diferentes.
Em primeiro lugar estava o xintoísmo dos templos (jinjo shinto), que por uma artimanha constitucional se dizia não religioso e que o Estado subvencionava e controlava, nomeando os sacerdotes e organizando as cerimônias tradicionais, Para não comprometer a teórica liberdade de culto, os sacerdotes xintoístas eram tidos por funcionários públicos. O xintoísmo era ensinado nas escolas e os mestres levavam obrigatoriamente seus alunos a suas cerimônias principais. Divinizaram-se oficialmente numerosos imperadores antigos e outras personagens políticas do passado; destacou-se o culto do imperador Ojin-Hachiman, que foi tomando o caráter de deus da guerra e a quem foi dedicado um grande número de templos à medida que o imperialismo militarista japonês se desenvolvia.
O segundo xintoísmo foi o da casa imperial (kohitsu shinto). Constava de cerimônias muito arcaicas e, apesar de ser de tipo familiar, influiu no culto dos santuários. Nos anos que vão desde a restauração Meiji à derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, em 1945, o país se viu como uma grande família encabeçada pelo imperador e seus cultos.
O terceiro xintoísmo, estimado como puramente religioso e equiparado ao resto das religiões do Japão, era o dos Novos Cultos (kyoha shinto). Eram novas religiões que utilizavam o prestígio e amparo do xintoísmo para desenvolver sua mensagem religiosa; treze desses grupos foram aceitos durante a época Meiji como religiões independentes, sendo inscritos no registro oficial de cultos (ujiko-shirabe) que se realizava obrigatoriamente nos templos xintoístas oficiais.
O xintoísmo atual
Com a legislação imposta pelos Estados Unidos em 1946, chegou-se a uma real liberdade de curto que favoreceu uma fragmentação religiosa extraordinária no Japão.
Estima-se que o variado panorama de grupos religiosos japoneses atuais inclua vários milhares de agrupamentos principais. Alguns são antigos, como o Tenrikyo (Religião da Sabedoria Divina), fundado em 1838 pela vidente extática Miki Nakayama (1798-1887), ou o Omotokyo (Religião da Grande Fonte), fundado pela vidente milenarista Nao Deguchi (1836-1918).
Outros grupos são posteriores em sua fundação à derrota japonesa e costumam insistir em amalgamar crenças tanto xintoístas como budistas ou cristãs. Muitos baseiam sua prática religiosa na cura e nas técnicas extáticas e se articulam com crenças populares muito arcaicas de índole xamânica.
Num âmbito exclusivamente privado, são mantidas as cerimônias do shinto imperial. Também continua o xintoísmo dos santuários, fortemente enraizado nas regiões agrícolas, as mais tradicionais, que segue oferecendo hoje em dia um marco cerimonial de referência a muitos japoneses. Estima-se que sejam xintoístas, na atualidade, 100 milhões de fiéis, e entre 11 e 15 milhões correspondem a alguns dos duzentos novos cultos principais.
Por: Roberto Braga Garcia