Sagarana, publicado pela primeira vez em 1946, rendeu a Guimarães Rosa vários prêmios importantes da literatura brasileira. O livro de contos é a primeira obra-prima do autor, dotada de uma prosa literária transcendente.
A obra reúne nove contos ou novelas, que revelam o universo da linguagem regional de João Guimarães Rosa, recriando de forma fictícia a vida de personagens saídos do interior das Minas Gerais.
A experiência humana vivida por essas personagens é responsável pela riqueza da obra que a partir desse regionalismo, une a paisagem ao homem, “delirando junto com ele (Sagarana), servindo de itinerário sensorial à sua cegueira (São Marcos), servindo de caminho e descaminhos (Duelo), mostrando seus avisos e perigos (O burrinho pedrês), bem como instrumentalizam, através do trabalho, a possibilidade de ascensão ao plano do divino (A hora e vez de Augusto Matraga)”.
A mimese, recurso que recria (imita) a realidade na obra, atinge seu ápice ao reproduzir detalhes, vistos com insignificância, da natureza a fim de universalizar o texto, isto é, universalizar as características das Gerais. A linguagem regional utilizada pelo autor se alia à poesia para produzir efeitos inesperados. Há a união entre o erudito e o regional, fato que surpreende quem lê a obra. A mesma linguagem que surpreende, prende e espanta também pode ser dificuldade para muitos leitores da obra rosiana.
Quanto ao título do livro, é mais um dos neologismos criados por Guimarães Rosa. A junção de saga (narrativa épica) e do sufixo rana (que em tupi significa “à maneira de”) deu origem à Sagarana. Portanto, os nove contos são narrados à maneira de epopeias, associando-as com o regional com uma dimensão universal.
Estilo de época
João Guimarães Rosa pertence à terceira geração do Modernismo brasileira, portanto, Neomodernismo (1945). Tem o mérito de ser um dos mais importantes escritores da literatura brasileira. Saragarana é uma obra enquadrada na tendência criada por seu autor, o regionalismo universalizante, viso que a sua leitura do regional é feita de um ângulo universal.
Estrutura de Sagarana
Os contos da obra geralmente trazem epígrafes que se relacionam ao texto. Esse recurso tem a intenção de descobrir o mundo regional e os costumes do interior das Gerais.
As narrativas em Sagarana são marcadas por um tempo indeterminado. Mas o espaço é delimitado, descrito como o interior de Minas Gerais, informando inclusive nomes de povoados, vilarejos e fazendas. Vale lembrar que São Paulo e Goiás são mencionados de forma circunstancial.
O foco narrativo predominante nos contos é a terceira pessoa, apenas Minha Gente e São Marcos estão em primeira pessoa. Já no conto Corpo fechado, a narrativa é construída pelo médico que acompanha a história de Manuel Fulô.
Resumo dos 9 contos de Sagarana
Os seguintes contos integram a obra: O Burrinho Pedrês; Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou A volta do marido pródigo; Sarapalha; Duelo; Minha Gente; São Marcos; Corpo Fechado; Conversa de Bois; A hora e vez de Augusto Matraga.
1. O burrinho pedrês
O primeiro conto do livro é a história de um burrinho, chamado Sete-de-Ouros. Este burrinho já é velho, está “encostado” e esquecido numa fazenda.
Nessa fazenda, estão acontecendo os preparativos para uma longa e difícil viagem para levar gado a outra região, quando os homens percebem que falta um animal para compor as montarias para os vaqueiros.
Alguém se lembra do burrinho, que acaba por ser escalado para fazer a viagem, levando em seu lombo um dos vaqueiros. A aparência do burrinho é tão ruim que nenhum boiadeiro quer montá-lo, já que isso humilharia o homem que o montasse durante a viagem. O burrinho acaba por ser montado pelo vaqueiro menos importante.
Muitos dias depois, no retorno da viagem, cavalos e cavaleiros, jovens e fortes, morrem na travessia de um rio transbordado de suas margens, devido a uma grande enchente. Sete-de-Ouros, o boiadeiro montava o burrinho, além de um segundo homem que, perdeu seu cavalo na enchente, agarram-se ao rabo do burrinho e salvam-se.
Justificativa para a ocorrência desse “impossível” fato: o salvamento só foi possível graças à experiência adquirida pelo pequeno burrinho em situações parecidas e vividas por ele anteriormente.
2. A volta do marido pródigo
Lalino Salãthiel, que vive no interior de Minas com Maria Rita, sua esposa, sonha com aventuras amorosas em terras cariocas. Depois de juntar dinheiro, parte para realizar esse sonho, deixando a esposa.
Terminados o dinheiro e a empolgação, ele retorna, porém encontra Maria Rita envolvida com o espanhol Ramiro.
Lalino envolve-se nas disputas políticas locais e, com a vitória de seu candidato, consegue dali expulsar os estrangeiros. Por fim é perdoado pela esposa.
3. Sarapalha
Outra narrativa de Sagarana, conta a história de dois primos doentes de malária epidêmica na região, a qual já matara muita gente e desvalorizara as terras. Os dois não abandonaram o lugar, como fizera quase toda a população rural, porque, afinal, já estavam contaminados e informados pelo doutor que deveriam ter apenas mais um ano de vida.
A história se resume na conversa “mole” entre os dois, os quais não têm mais nenhuma ocupação, a não ser ficar aguardando, acocorados no terreiro, as crises provocadas pela doença: tremedeiras e descontrole do pensamento.
Nas tantas conversas, às vezes sobre o passado, surgem revelações e confissões, como a de que primo Argemiro fora perdidamente apaixonado pela esposa do primo Ribeiro, Luisinha, muito bonita, que acabara fugindo com um boiadeiro. O primo jamais revelara a ninguém sua paixão. Só agora, perto da morte.
Às vezes, da sezão (febre), os personagens tiram algum prazer, porque durante a crise de febre, ocorre o esquecimento de quem são e, por conseguinte, de seus dramas, como se fosse o efeito de um alucinógeno.
Um dos dados curiosos do conto é que, enquanto um tem a crise, o outro cuida dele, vela por ele e ambos se revezam nessa tarefa, entre um ataque e outro. Outra originalidade da história está na transferência das alucinações das personagens para o cenário natural, num processo de fusão entre a natureza e as alucinações.
4. Duelo
Turíbio Todo, ao voltar de uma pescaria, flagra sua mulher Dona Silivana com o ex-militar Cassiano Gomes. Contém-se e adia a vingança. Mas, ao levá-la adiante, mata o irmão de Cassiano, fugindo em seguida.
Turíbio é perseguido pelo interior de Minas, o que dura até ele ir para São Paulo. Com problemas de coração, Cassiano interrompe a busca no lugarejo do Mosquito. Ali conhece Timpim Vinte-e-Um, a quem passa a ajudar financeiramente.
Em troca desse auxílio, Cassiano pede a Timpim que vingue a morte de seu irmão. Após a morte de Cassiano, Turíbio retorna a Minas, mas Timpim cumpre o pedido de Cassiano.
5. Minha gente
Um inspetor escolar é o narrador dessa história. De férias, ele visita a fazenda do tio, Emílio, no interior de Minas. Ao reencontrar a prima Maria Irma, namorada de infância, tenta retomar o relacionamento. Maria Irma consegue desviar a atenção do primo para Armanda, noiva de Ramiro, rapaz por quem Maria tinha interesse.
O narrador vê-se enredado pelas estratégias amorosas de sua prima. Ela consegue fazer com que Armanda se interesse pelo narrador, deixando Ramiro livre. O duplo casamento fecha o conto.
6. São Marcos
A história é narrada por Izé. Ele desfaz das crendices populares, sempre zombando de João Mangolô, negro considerado feiticeiro.
Em um passeio, Izé fica cego repentinamente. Resolve apelar para certa crença, rezando a oração de São Marcos, considerada poderosa.
Usando os outros sentidos (olfato, audição e tato), consegue chegar à casa do feiticeiro. Recupera a visão quando este retira a venda dos olhos de um boneco. Izé, mais crédulo, despede-se de Mangolô.
7. Corpo fechado
Manuel Fulô vive em Laginha e tem duas paixões: sua noiva Das Dores e uma mulinha de estimação, a Beija-Fulô.
Um valentão chamado Targino cobiça Das Dores e fala para Manuel Fulô que dormirá com ela antes do casamento. Manuel quer enfrentar o valentão e é ajudado pelo narrador, um médico local, seu amigo.
Esse médico recorre a Antonico (considerado feiticeiro), que fecha o corpo de Manuel. No duelo com Targino, Manuel escapa, ferindo mortalmente
8. Conversa de bois
O conto “Conversa de bois” narra o “bate-papo” entre os bois de um carro de bois. Durante a viagem que fazem levando o corpo do pai de Tiãozinho para ser enterrado, comentam a situação do menino (Tiãozinho), guia do carro (candeeiro; popular: candieiro) puxado por eles.
Pela conversa dos bois, o leitor fica sabendo que o menino está amargurado não só pela morte do pai, depois de longa doença, mas também por ser maltratado por Agenor Soronho, dono do carro, portanto, patrão de Tiãozinho. Além disso, Soronho é amante da bonita e jovem mãe do menino, mesmo antes de o pai de Tiãozinho morrer.
A mãe não o protegia das maldades de Agenor Soronho, porque este era quem mantinha a casa em que vivia com seu filho e com o marido, moribundo. Tendo em vista o ódio do menino pelo patrão e a raiva que os próprios bois sentiam pelo homem, os bois tramam, então, matar o “coisa ruim” Agenor Soronho.
9. A hora e a vez de Augusto Matraga
No conto “A hora e a vez de Augusto Matraga”, ao lado do tema da luta do Bem contra o Mal, novamente o autor sugere a atuação do fantástico ou maravilhoso literário da seguinte maneira: Augusto Matraga é um homem ruim e violento.
No decorrer de uma de suas rixas com rivais da região em que vivia, sofreu uma cilada, foi impiedosamente agredido e abandonado em uma ribanceira, dado como morto. Ajudado por um casal de negros, já velhinhos, os quais moravam no mato em que Nhô Augusto fora deixado, recupera-se, como por milagre, vai embora para lugar distante, levando com ele o casal que salvara sua vida.
Nesse lugar em que passa a viver, Augusto Matraga revela-se um novo homem: trabalhador, torna-se bom, homem de fé e assume o lado da justiça. Graças à experiência de luta e à força física, defende os fracos e oprimidos. Granjeia admiração e reconhecimento das pessoas e, um dia, para salvar uma família indefesa, ameaçada por um bando de cangaceiros que aparecera no povoado, Matraga se vê obrigado a travar uma luta de vida ou de morte contra o chefe do bando, seu antigo amigo, o temido cangaceiro Joãozinho Bem-Bem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- ROSA, João Guimarães. Sagarana. 12. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1970.
- Sagarana – análise comentada. Disponível em: <http://sejaetico.com.br/novo/professor/em/analise-de-livros>. Acesso em 10 fev. 2013.
Por: Miriã Lira