Reunida por Garcia de Resende em 1516, o Cancioneiro Geral reúne a poesia palaciana (feita nos palácios) de Portugal do século XV ao início do século XVI e traz bastantes informações sobre o cotidiano da nobreza e a fidalguia do Humanismo.
O Cancioneiro Geral contém 1000 poesias de 286 autores (destes, 29 escreviam em castelhano). As cantigas (mote de 4 versos) e os vilancetes (mote de 3 versos) se parecem com as cantigas de amor quanto à declaração respeitosa a uma dama da corte e diferem delas quanto a mostrarem uma mulher mais sensual (sensualidade menos reprimida).
Boa parte dos poemas do Cancioneiro Geral foi produzida para animar os nobres intelectuais ociosos da corte, retratando eventos amorosos e intrigas cortesãs circunstanciais da época, o que desinteressa o leitor atual. A melhor produção lírica do livro são mesmo as cantigas e os vilancetes.
Características
Os redondilhos e a medida velha
A diversidade métrica e a espontaneidade das cantigas trovadorescas são substituídas pela utilização sistemática dos versos redondilhos, com duas medidas: 7 sílabas poéticas (redondilhos maiores) e 5 sílabas poéticas (redondilhos menores). As modalidades poéticas que se desenvolveram nessa época com a utilização dos versos redondilhos receberam a denominação de arte menor ou medida velha, por oposição à medida nova (versos decassílabos, sonetos etc.), introduzida em Portugal em 1527, por Sá de Miranda.
As composições de mote glosado
Separada do canto e da dança, a poesia busca o seu ritmo e sua expressividade na própria linguagem, do que decorrem a introdução e a sistematização de novas formas de composição. A estrutura paralelística, comum nas cantigas trovadorescas, é substituída pela técnica do mote glosado, ou seja, o poeta vale-se de um mote (o mesmo que tema, motivo), desenvolvido, ou “poetado”, na glosa. Cada estrofe da glosa constitui uma volta e deve retomar um ou mais versos do mote.
Entre as modalidades poéticas mais cultivadas no Cancioneiro Geral, devem ser destacadas:
• O vilancete, formado por um mote de 2 ou 3 versos, seguido da glosa ou volta, composta por uma ou mais estrofes, com 7 versos, dispostos em esquemas fixos de rima. A palavra vilancete deriva de vilão, habitante de vila, sugerindo a origem popular desse tipo de composição, de estrutura idêntica ao villancico espanhol.
• A esparsa, composta de uma única estrofe de 8 a 16 versos, destinava-se a comunicar sentimentos de tristeza e melancolia. De origem provençal, não impunha mote nem repetição de versos.
• A cantiga, reservada quase sempre aos temas amorosos, compunha-se de um mote de 4 ou 5 versos e de uma única glosa, com de 8 a 10 versos.
• A trova, composição de forma livre, com número variável de estrofes, predominando as de 4 versos (quadras ou quartetos) e as de 8 versos (oitavas). As trovas foram utilizadas tanto em longos poemas narrativos, como em poemas curtos, de apenas uma estrofe, de intenção satírica ou zombeteira ou, ainda, sob a forma de “desafios”, debates poéticos sobre os mais variados temas.
Os temas
Ao lado de composições frívolas, poesias de circunstância e meros “exercícios” poéticos de virtuosismo formal e conceituai, que o compilador do Cancioneiro Geral chamou de “cousas de folgar e gentilezas”, há novidades temáticas que devem ser destacadas: a influência clássica (Ovídio), italiana (Dante e Petrarca) e espanhola (Marquês de Santillana, Jorge Manrique); tentativas de poesia épica, poesia religiosa, poesia didática e moralizante, poesia satírica (muitas vezes grosseira, ao lado de textos de refinada ironia), poesia dramática (para ser encenada em pequenos quadros).
O ponto alto do Cancioneiro Geral é representado pelo lirismo amoroso. O amor cortês, a súplica mortal, a coita retomam a tradição trovadoresca, enriquecida com a influência petrarquista na introspecção sentimental, na análise das contradições do amor. Nessa direção, os poetas palacianos da Corte de Avis preparam, com seus paradoxos e indagações acerca do amor, a poesia lírica de Camões e até mesmo o advento do Barroco.
Algo de novo se insinua nesse lirismo suplicante e contemplativo: a mulher desce à Terra, carnaliza-se, adquirindo graças físicas e sensoriais que a maioria dos velhos trovadores galego-portugueses não ousava revelar.
Autores e obras
Entre 286 poetas, a grande maioria versejadores inexpressivos, poucos se salvaram da mediocridade geral, devendo ser mencionados:
Garcia de Resende: Compilador do Cancioneiro Geral, autor do prólogo à coletânea, dirigido ao “Mui alto e mui poderoso Príncipe nosso senhor”, no qual elogia a proteção real à poesia e aos poetas, Garcia de Resende incluiu no Cancioneiro algumas composições de sua autoria.
A mais notável são as “Trovas à Morte de Dona Inês de Castro”, inspiradas no amor e morte de Inês de Castro, “aquela que depois de morta, foi rainha”, o mais importante símbolo português do amor trágico, tema nacional que inspirará a tragédia A Castro, de Antônio Ferreira, e o episódio de Inês de Castro, no canto III de Os Lusíadas, de Camões, e será retomado até a nossa época por vários autores portugueses e brasileiros.
• João Ruiz de Castelo Branco – Autor da “Cantiga Sua Partindo-se”, que analisaremos no texto ao final do artigo.
• Nuno Pereira e Fernão da Silveira – Foram dois entre os cerca de dez poetas que intervieram em uma polêmica literária, espécie de tenção ou desafio, com 3.172 versos, sob o título O Cuidar e o Suspirar, em que os poetas debatiam, em versos, o tema: Quem é mais amante? Aquele que se declara e deixa transparecer o seu sentimento? Ou aquele que sabe guardá-lo para si?
• Conde Vimioso e Aires Teles – Contendores de uma polêmica, semelhante a O Cuidar e o Suspirar, na qual o Conde Vimioso defende a concepção platônica do amor — o verdadeiro amante é o que não ousa desejar nada que possa ofender a amada —, e seu oponente, Aires Teles, representa a força irresistível do amor, o desejo ardente de satisfazer a sensualidade, mesmo “contra a razão”.
• Diogo Brandão – Autor de Fingimento de Amores, inscreve-se na linha dos Triunfos, de Petrarca, e de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, especialmente no episódio de Francisca de Rimini, que, lançada ao inferno por ter se apaixonado pelo cunhado, exalta o poder do amor.
O tema dantesco do inferno de amor foi incorporado Diogo Brandão, Garcia de Resende e Duarte de Brito, por intermédio do Marquês de Santillana — El Infierno de los Enamorados —, poeta castelhano, primeiro a assimilar à sua poesia narrativa episódios de A Divina Comédia.
O tema da fatalidade do amor, do amor trágico, associado ao sentimentalismo, ao saudosismo e à natureza expressiva, será uma das vertentes mais sólidas de toda a lírica lusa e brasileira, que incluem Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco, Gonçalves Dias, entre outros.
Observe a semelhança:
Nessun maggior dolore / Che ricordarsi dei tempo felice / Ne Ia miséria.
(Dante, Inferno, canto V)La mayor cuyta que aver / puede ningun amador /es nembrarse dei plazer / en el tiempo de dolor.
(Marquês de Santillana, El Infierno de los Enamorados)Que neste fogo penados / sejamos sem esperança, /mata nos mais a lembrança / dos prazeres já passados.
(Diogo Brandão, Fingimento de Amores)
• Gil Vicente – teve incluídas no Cancioneiro Geral algumas de suas poesias. Suas peças teatrais, escritas e representadas na mesma corte que produziu a poesia palaciana, frequentemente dialogam com ela, seja satirizando o estilo afetado e a linguagem artificiosa e alambicada de grande parte da poesia lírica do Cancioneiro Geral (o que se vê nas farsas Quem Tem Farelos? e O Velho da Horta), seja incorporando diversas formas da lírica pré-renascentista aos seus autos, com densidade tanto poética quanto dramática.
A permanência do Cancioneiro Geral
A medida velha dos poetas do Cancioneiro Geral continuou sendo cultivada no período clássico-renascentista, mesmo depois do advento da medida nova (dos decassílabos e das formas fixas), trazida da Itália, em 1527, por Sá de Miranda.
Bernardim Ribeiro tem 12 composições suas incluídas no Cancioneiro Geral. Francisco Sá de Miranda, poeta que trouxe para Portugal o dolce stil nuovo italiano, mesmo depois de se transformar em difusor do decassílabo, dos sonetos, odes, elegias e outras modalidades clássicas, jamais abandonou os redondilhos, as trovas e vilancetes da medida velha. Mesmo Camões, maior expoente da escola clássica lusa, valeu-se da naturalidade do ritmo dos versos redondilhos, com os quais compôs parte apreciável de sua lírica (composições de motes glosados, vi-lancetes, trovas, cantigas e esparsas).
Na pré-história da literatura brasileira, o Pe. José de Anchieta valeu-se da medida velha e das modalidades do Cancioneiro Geral na poesia catequética e mariana, que escreveu em português e em castelhano.
O gosto pelo paradoxo, o formalismo rigoroso, a atitude lúdica e a tenuidade dos temas fazem do Cancioneiro uma antecipação do cultismo e do conceptismo barrocos, no século XVII, substituindo-se o espírito festivo da poesia palaciana pelo tom pessimista e desencantado da poesia seiscentista.
A tensão emocional e a forma lapidar de algumas composições da coletânea de Garcia de Resende conservam até hoje o interesse, revelando as primeiras individualidades poéticas e fixando uma tradição lírica portuguesa. Essa foi a contribuição dos poetas que já destacamos.
Bernardim Ribeiro soube transmitir com originalidade uma maneira de ser exclusivamente portuguesa, que o Romantismo, o Neogarrettismo e o Saudosismo, correntes literárias de inspiração nacional, aproveitaram intensivamente.
O tema inesiano (o mito da “linda Inês”), resgatado das crônicas medievais por Garcia de Resende em suas Trovas, além de servir a Camões e Antônio Ferreira e de inspirar inúmeros poetas românticos, persistiu até o nosso século, com Miguel Torga e Natália Corrêa, em Portugal, e Jorge de Lima, no Brasil.
A malícia e a graça da sátira coligida no Cancioneiro Geral, apoiadas nos jogos de som e sentido, nas paronomásias e trocadilhos engenhosos, perduram em Gregório de Matos, Bocage e João de Deus.
Os redondilhos maiores, com sete sílabas poéticas, fixaram um ritmo que marcará toda a poesia posterior, de inspiração popular ou de feição culta, até o Modernismo, que adaptou a herança do ritmo tradicional às ousadias formais e temáticas. No Brasil, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Alphonsus de Guimaraens, Manuel Bandeira e João Cabral, entre muitíssimos outros, ampliaram as possibilidades expressivas dos heptassílabos; em Portugal, Almeida Garrett, João de Deus, Antônio Nobre, Sá-Carneiro e Fernando Pessoa (na poesia ortonímica) modularam ao gosto de suas épocas a cadência dos redondilhos maiores, que também embalaram nossa infância com as cantigas de roda, cantigas de ninar, acalantos, e marcam tudo quanto o homem do povo canta e recita, nos dois lados do Atlântico:
Texto na medida velha
“Cantiga Sua Partindo-se”
Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem, (1)
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida. (2)Partem tam tristes os tristes,
tam fora d’esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.(João Ruiz de Castelo Branco)
Comentários:
- Trata-se da composição mais conhecida do Cancioneiro Geral. Observe que, ao contrário das cantigas do Trovadorismo, não é necessário “traduzir” para o português moderno. Não se trata mais do dialeto galego-português, mas da língua portuguesa arcaica, anterior à sistematização ocorrida no período clássico. Atualizamos a ortografia.
- Em (1), temos um exemplo de sinédoque, figura de linguagem em que o poeta diz a parte, “olhos”, pelo todo (os seus sentimentos, a sua tristeza).
- Em (2), temos uma bela hipérbole lírica, traduzindo pelo exagero a intensidade do sofrimento. Temos também um hipérbato, que consiste na inversão da ordem natural das palavras. Na ordem direta, teríamos: “Cem mil vezes mais desejosos da morte que da vida”.
- O poeta vale-se de vários outros recursos poéticos: aliterações (p.e., na reiteração das consoantes: “partem tam tristes”, ou “meus olhos por vós”); a rima (esquema ABAB – CDCCD – ABAB), além da utilização da medida velha, dos redondilhos maiores (sete sílabas):
Por: Renan Bardine
Veja também:
- Poesia Palaciana
- Fernão Lopes
- Luís Vaz de Camões
- Prosa Medieval
- Teatro de Gil Vicente
- Humanismo
- Trovadorismo