Pregador, missionário, político e diplomata, nos dois lados do Atlântico, o Padre Antônio Vieira está para a prosa em língua portuguesa como Camões está para a poesia.
Aos seis anos, transfere-se com a família para a Bahia e matricula-se no Colégio dos Jesuítas, em Salvador. Graduado como Mestre em Artes, abandona o lar paterno, em 1623, e inicia seu noviciado na Companhia de Jesus. Em 1633, um ano antes de ordenar, pregou pela primeira vez: Sermão XIV, da série Maria, Rosa Mística. Ordenado, lecionou Teologia e começou a granjear fama como pregador. Nessa época, empenhou-se em fortalecer a resistência moral contra as invasões holandesas na Bahia: o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, 1640, constitui um vigoroso apelo à luta contra os protestantes holandeses e uma das obras-primas da oratória vieiriana.
Em 1641, restaurada a monarquia lusitana com a Casa de Bragança, superado o jugo filipino, Vieira parte para Portugal a fim de protestar lealdade ao novo rei, D. João IV Em 1642, prega pela primeira vez na Capela Real de Lisboa, na qualidade de pregador régio. Assume também as funções de conselheiro e embaixador, a serviço de D. João IV De 1646 a 1651, atuou como diplomata na França, na Holanda e na Itália.
Em 1652, retorna ao Brasil para chefiar as missões do Maranhão. Dedica-se à catequese e conversão dos indígenas e viaja até o Amazonas, tentando vencer as resistências dos colonos aos propósitos catequéticos. Desalentado, regressa a Portugal, em 1654, tentando obter de D. João IV uma solução para o problema dos índios. Alcançou a promulgação da lei que restringia o cativeiro dos índios às hipóteses de “guerra justa”, defensiva ou ofensiva, ou de resgate de índios cativos de outra tribo, como prisioneiros de guerra. Enquanto viveu D. João IV, Vieira pôde resistir à pressão dos colonos. Com a morte do rei, em 1656, as dificuldades foram se avolumando e culminaram com a expulsão de Padre Antônio Vieira e outros sacerdotes, em 1661.
Novamente em Portugal, viveu alguns anos de amargura, revolta e humilhações, como réu do Tribunal da Inquisição. Durante oito anos foi confinado numa casa jesuítica e proibido de pregar. A acusação formal era de profetismo, por causa das ideias de fundo sebastianista, mas a causa real residia no fato de que a Inquisição não perdoava a atitude de defesa dos cristãos-novos (judeus convertidos), que Vieira procurou proteger da fúria inquisitorial. Com o novo rei, D. Pedro II, consegue sua libertação.
Em 1669, vai a Roma, onde pretendia a revisão do processo que lhe movia a Inquisição portuguesa. Consegue não só a anulação do processo junto ao Vaticano, como renova seus êxitos de notável pregador, agora também em língua italiana, no Sacro Colégio e nos salões literários da rainha Cristina da Suécia, exilada em Roma, e de quem Vieira foi confessor. Reabilitado, volta para Lisboa e, em 1681, regressa definitivamente a Salvador. Recolhido na Quinta do Tanque, dedica-se a redigir e polir os seus sermões e outras obras para publicação, iniciada em 1679. Sem abandonar a atividade de pregador, dedicou-se, nos últimos anos de vida, à preparação de sua vastíssima obra, composta de cerca de 200 sermões, mais de 500 cartas e de obras proféticas: História do Futuro, A Chave das Profecias e Esperanças de Portugal, além de inúmeros esparsos. Morreu em 18 de julho de 1697, no Colégio da Bahia, para onde se recolhera no ano anterior, talvez convicto do fim próximo.
Vieira, um autor luso-brasileiro?
A valorização das relações do Pe. Vieira com a literatura brasileira é atitude da crítica contemporânea. Os primeiros historiadores da nossa literatura, Sílvio Romero e José Veríssimo, não dissimularam sua desafeição pelo jesuíta. Ronald de Carvalho alijou-o de sua História da Literatura Brasileira. Oswald de Andrade atacou-o com seu tacape antropofágico:
“Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel, mas sem muita lábia. Faz-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.” (Manifesto Antropófago, 1928).
A partir da década de 1930 passou a ser lugar-comum situá-lo no ponto mais alto do Seiscentismo luso-brasileiro, em companhia de Gregório de Matos. Não é uma questão pacífica. Ainda que Antônio Vieira tenha vivido metade de sua vida no Brasil (de 1614 a 1641, de 1653 a 1661 e de 1681 a 1697), que tenha pregado no e sobre o Brasil alguns de seus melhores sermões e que tenha se ocupado de questões da Colônia, o seu ponto de vista é sempre o do cidadão do mundo, do homem da Igreja, do defensor dos interesses do Império Português. A linguagem de que se serve é portuguesa, erudita, barroca, nada tem de abrasileiramento; a complexa ideologia que sustenta, não sem contradições, a sua situação, alimentam-se mais do humanitarismo e da lucidez do cidadão do mundo, do que de qualquer sentimento nativista ou de especial predileção pelo Brasil.
Contudo, como os limites entre o que ainda é português e o que já é brasileiro na Era Colonial não são de fácil demarcação, e como o que se escreveu sob o sol tropical é, em quase tudo, um simples prolongamento do que se escrevia na Metrópole, a questão do Vieira português e do Vieira brasileiro interessa muito mais ao estudioso de História do que ao de Literatura e, mesmo quando o pregador se concentra nas questões dos índios, dos negros e da guerra holandesa, é útil relembrar que o faz sob o ponto de vista do intelectual europeu. Ao contrário de Gregório de Matos, que colhia a substância de seus temas da vida baiana, o padre Vieira falava aos fiéis da Bahia como se estivesse falando com o mundo, mesmo que o assunto fosse de interesse local.
Por: Renan Bardine
Veja também:
- Sermão da Sexagésima – Padre Anônio Vieira
- Barroco
- A Igreja e a Colonização
- Reformas Religiosas e a Contra-Reforma